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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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O capitalismo e seus filhos esquecidos

A desmemória das classes médias é o espelho da alienação dos ricos

O capitalismo e seus filhos esquecidos (Foto: REUTERS/Amanda Perobelli)

O século XXI produziu um paradoxo: quanto mais o capitalismo avança, mais ele apaga as memórias que o limitaram. As sociedades que conquistaram direitos, trabalho digno e proteção social parecem ter esquecido de onde vieram. O conforto transformou-se em amnésia, e a classe média global — herdeira de lutas heroicas — tornou-se refém da ilusão de que o mérito basta. Há o risco civilizatório de um mundo que naturaliza a precariedade e o privilégio.

A memória perdida das lutas

As sociedades modernas vivem uma forma curiosa de esquecimento: lembram tudo o que o mercado produz, mas nada do que o povo conquistou. A memória da luta social, da greve, da mobilização política, foi sendo apagada em nome da eficiência e do consumo. É como se as conquistas da civilização tivessem surgido por geração espontânea — e não do sangue, do suor e da organização coletiva de milhões de trabalhadores e trabalhadoras.

Maurice Halbwachs, o sociólogo francês que formulou o conceito de memória coletiva, lembrava que uma sociedade só recorda aquilo que serve à sua coesão presente. O capitalismo, ao naturalizar o sucesso individual, precisa esquecer a história das lutas que limitaram seu poder. Assim, o esquecimento não é um acidente: é um projeto.

Jeffrey Olick, ao estudar a política da lembrança e do esquecimento, mostrou que o poder contemporâneo não reprime apenas pela força, mas também pela seleção das memórias. O que deve ser recordado e o que deve ser esquecido é parte do jogo político. Por isso, as democracias enfraquecidas tornam-se sociedades amnésicas: já não sabem de onde vieram e, por isso, não sabem mais para onde ir.

O conforto como anestesia

O capitalismo tardio transformou o conforto em anestesia. As classes médias — outrora protagonistas de lutas por cidadania — foram ensinadas a confundir bem-estar com consumo, dignidade com crédito. O “filho esquecido” do capitalismo é aquele que usufrui dos direitos sociais, mas acredita que eles são naturais, não o resultado de uma longa disputa.

O consumo tornou-se o sucedâneo da política. O shopping center substituiu a praça pública, o celular tomou o lugar da assembleia. O cidadão virou cliente; o trabalho, aplicativo. O indivíduo contemporâneo vive cercado de tecnologia e privado de sentido: sabe quanto ganha, mas não sabe o que perdeu.

Erik Olin Wright, sociólogo marxista norte-americano, descreveu esse fenômeno como a reconfiguração das classes médias: fragmentadas entre a insegurança do trabalho e o desejo de distinção, elas perderam consciência coletiva. É o proletariado sem nome, o trabalhador autônomo que se vê como empresário, mesmo quando mal sobrevive.

A Europa cansada e o Brasil amnésico

Na Europa, o Estado de Bem-Estar virou museu. As gerações que nasceram sob o amparo do sistema social europeu acreditaram que ele era eterno. Quando vieram o desemprego e a austeridade, o instinto foi culpar o estrangeiro, não o capital.

Os “coletes amarelos” na França, os desabrigados na Inglaterra e a precariedade da juventude espanhola são o retrato de um continente que esqueceu a sua própria solidariedade.

O Brasil, de modo mais dramático, também sofre de amnésia social. A geração que ascendeu nos anos 2000 — que teve acesso à universidade, ao crédito e ao consumo — acreditou que o progresso era obra individual, e não fruto de uma política pública. Quando a crise chegou, a mesma geração passou a rejeitar o Estado que a havia sustentado. É o efeito perverso da desmemória: quem esquece a história da inclusão não reconhece a exclusão.

Esse esquecimento coletivo — que apaga a origem das conquistas e inverte responsabilidades — explica também a força ideológica da classe média. Foi nesse sentido que a filósofa Marilena Chaui, em 2013, durante homenagem ao ex-presidente Lula na Universidade Federal do ABC, declarou “odiar a classe média”, não por desprezo social, mas por enxergar nela o cimento moral de uma sociedade que naturaliza a desigualdade. Doze anos depois, em 2025, ela reafirmou: “Odeio a classe média até o fim dos meus dias. A classe média funciona oprimindo os dominados e bajulando os dominantes.”

A filósofa acrescentou que essa classe é o “suporte moral do autoritarismo” e o “instrumento de legitimação do ódio social”. Suas palavras, ainda que duras, expressam o diagnóstico de um fenômeno que atravessa continentes: a despolitização das classes médias e a sua conversão em muralha simbólica contra a solidariedade.

As redes sociais ampliaram esse vazio de pertencimento. A política foi substituída pela indignação difusa, e a solidariedade, pelo julgamento instantâneo. O neoliberalismo triunfa quando consegue apagar da memória coletiva a ideia de que o bem-estar é um direito — e não uma dádiva do mercado.

O progresso que esqueceu o povo

O esquecimento não é apenas histórico, mas moral. Uma sociedade que apaga o sofrimento do passado é incapaz de reconhecer a dor do presente. O capitalismo contemporâneo criou uma espécie de “memória líquida”: tudo se dissolve na velocidade da novidade. As injustiças de ontem se tornam ruído, e a desigualdade, paisagem.

A nova elite digital — rica em dados e pobre em humanidade — aprendeu a lucrar com o esquecimento. A precarização é vendida como liberdade; a solidão, como empreendedorismo. A mercantilização da vida atingiu o ponto em que o próprio tempo humano passou a ser extraído como recurso natural.

A desmemória das classes médias é o espelho da alienação dos ricos. Uns esquecem as lutas que os elevaram; outros fingem que venceram sem nunca depender de ninguém. Ambos se tornam prisioneiros de uma ilusão: a de que a civilização pode sobreviver sem solidariedade.

O dever de lembrar

A memória é o último território da resistência. Recordar as lutas que construíram o mundo moderno não é nostalgia, mas ato político. É o que impede que a história recomece como farsa.

Halbwachs dizia que lembrar é sempre lembrar com alguém — e talvez o nosso maior desafio seja reaprender a lembrar juntos. Recuperar a memória das greves, das marchas, das utopias é também recuperar a esperança.

O capitalismo pode ser muitas coisas, mas não pode prescindir da humanidade. E a humanidade, para existir, precisa da lembrança: lembrar de que a liberdade nasceu da luta, de que a igualdade custou vidas, de que o bem-estar não é milagre, mas conquista.

O esquecimento não é neutro: é a vitória silenciosa do poder sobre a memória.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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