O Evangelho da bala
Por que a educação é o único antídoto contra a fé que mata no Rio
De volta a Maceió - cidade que sempre me acolhe com ternura - é uma alegria poder mergulhar em um debate de tamanha relevância histórica e social. Estou aqui para o 9º Encontro Nacional do NESEM (Núcleo Escravidão e Sociedade na Época Moderna), integrado à 11ª Bienal Internacional do Livro de Alagoas. O evento, conduzido pelo historiador Gian Carlo de Melo, é mais que um encontro acadêmico: é um espaço de reflexão sobre as heranças que estruturam nossas desigualdades. É na intersecção entre história, livro e pensamento crítico que ainda podemos imaginar um país possível.
E é desse lugar - entre o passado e a urgência do presente - que volto meu olhar ao Rio de Janeiro, cidade fundada sob o signo da retórica e do espetáculo. Foi a francesa Jane Catulle Mendès quem, em 1911, nos deu o epíteto "Cidade Maravilhosa", encantada por um Rio efervescente onde mulheres como Júlia Lopes de Almeida e as fundadoras do Partido Republicano Feminino lutavam por voz e reconhecimento.
Hoje, porém, essa imagem está estilhaçada. O espelho da "cidade maravilhosa" reflete sangue. O que se vê é um currículo da morte, legitimado por uma retórica religiosa e punitivista que transforma o extermínio em política pública e a fé em justificativa moral.
"Em nome do Pai" e a blindagem política
Depois da operação policial mais letal da história recente - mais de 120 mortos nos Complexos da Penha e do Alemão - o governador Cláudio Castro, o cristão que governa "em nome do Pai", foi amplamente blindado por seus pares. Tarcísio de Freitas (SP) e Romeu Zema (MG) apressaram-se em apoiar o massacre, reforçando o dogma de que a única resposta à violência é o endurecimento repressivo.
Essa postura é perigosa porque converte a força em fé. A segurança pública vira liturgia, e a bala, sacramento. O "Evangelho da Bala" impõe-se como doutrina de Estado, onde o crime é pecado e a punição é redenção.
Mas a crítica feminista e social nos ensina que as soluções fáceis são as mais cruéis: custam vidas negras, periféricas, juvenis - e fracassam sempre. A violência não nasce da falta de fé, mas da falência sistêmica do Estado e da imaginação política.
Catulle Mendès e as pioneiras de 1911 já sabiam: a vida pública se transforma pela luta e pelo reconhecimento. E a única ferramenta capaz de desarmar o "Evangelho da Bala" é a Educação - entendida não como doutrinação, mas como ato de emancipação.
Uma educação feminista e social é a resposta mais estratégica e humana a esse tempo de fundamentalismos:
Educação é prevenção feminista: combater a evasão escolar é retirar jovens da mira do tráfico. Educação integral é política de autonomia e de futuro.
Educação é economia sustentável: escolaridade abre portas para o trabalho formal e rompe o elo entre miséria e ilegalidade. É um ciclo virtuoso que começa na sala de aula e fortalece famílias, sobretudo as mulheres, que sustentam a vida comunitária.
Escola é célula de resistência: nas favelas, são as escolas - e principalmente as professoras - que mantêm acesa a chama da cidadania sob o fogo cruzado. Elas são o que o Estado não tem sido: presença, escuta e cuidado.
A escolha não é entre polícia e escola
É impressionante como o poder público é ágil para defender operações policiais e lento para defender a escola. O Rio de Janeiro só sairá do luto quando compreender que segurança e educação não são opostas, mas complementares: a polícia deve proteger o espaço onde a escola possa florescer.
Enquanto o "Evangelho da Bala" aprisionar o Rio em seu passado mais brutal, a Educação seguirá sendo o único projeto capaz de resgatar o que há de humano na cidade - e de devolver sentido ao título de "Cidade Maravilhosa", não como slogan turístico, mas como promessa de vida, justiça e dignidade para todos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



