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Jeová Silva Santana

Professor e escritor

13 artigos

blog

O feminicídio, a lei e a literatura

Jorge Amado, há sessenta e cinco anos, imaginou o fim da impunidade para um gesto tão natural no machismo brasileiro quanto o de tomar um cafezinho

(Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)
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 O STF, este  órgão “tão odiado”, é fundamental para a nossa ainda débil democracia como revelaram os infaustos acontecimentos dos últimos seis anos. Tem lá suas derrapagens. O excesso televisivo sobre seus membros, por exemplo. No dia primeiro de agosto deste ano, por unanimidade, declarou-se ser inconstitucional uma excrescência que foi usada à farta para o assassinato de mulheres: a famigerada legítima defesa da honra, embutida no Código Penal desde 1940. É uma decisão importante que vem se somar a outras em vigor, tais como Delegacias da Mulher, Disque Denúncia, protocolos contra abusos em bares e boates, medidas protetivas etc.  

 Entre as mazelas sociais brasileiras o machismo tem lugar de ponta. Dele derivam outras como o racismo, a exploração e a exclusão. A ideia do tudo é meu não é figura de retórica. Qualquer impeditivo  a essa propensão é varrido com murros, pontapés e tiros. Infelizmente ainda é forte a imagem da  mulher-objeto que, no passado, estava não só entre quatro paredes, mas também fora delas em propagandas, filmes e programas de humor. No presente,  convive-se com estatísticas pandêmicas na linha “a cada tantos minutos, a cada hora uma mulher...”. A dor de muitas Marias nem sempre sai no jornal. Somente uma profunda revolução educacional e cultural exterminará essa barbárie nossa de cada dia.

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 Ao puxar o fio da memória,  um dos casos mais emblemáticos, diante da  decisão do Supremo é, sem dúvida, o do assassinato da socialite Ângela Diniz  pelo empresário Doca Street em dezembro de 1976. Depois de semanas foragido, ele só deu a cara à justiça em janeiro de 1977. Saiu lindo, leve e solto  no primeiro julgamento, em 1979, por ter cumprido seis meses de cana. Foi condenado a quinze anos no segundo, em 1981, depois de uma intensa campanha movida pelo movimento feminista apoiada por uma frase revolucionária: Quem ama não mata. Ele ficou preso seis anos; escreveu, em 2006, o livro Mea culpa contando a “sua versão” e foi para o andar de baixo em 2020.     

 É sabido que a literatura é uma poderosa forma de representação do homem e seus conflitos. Ela tanto pode chamar a atenção, nas entrelinhas,  para as formas de opressão no presente quanto  deslocar este para  o futuro por meio da alegoria. Exemplos não faltam: O processo, de Franz Kafka; Admirável mundo novo, de Aldous Huxley; 1984, de George Orwell. Entre nós, nada mais revelador da tensão entre práticas primitivas do capitalismo em meio à  luta pela terra e à busca do trabalho do que a entranhada em Vidas secas, de Graciliano Ramos,  ou em Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto.  

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 Não sei quais foram as negociações entre a Globo e os herdeiros de Jorge Amado para a refilmagem da novela Gabriela, cravo e canela, em 2012,  por conta  do seu centenário de nascimento. Nela, José Wilker faz o papel do coronel Jesuíno Mendonça cuja relevância, no romance, é matar a mulher e o amante, além de ser amigo do importante coronel Ramiro Bastos. Mais nada. Em nenhuma página ele diz, para dona Sinhazinha, “Hoje eu quero lhe usar”, bordão que, no remake,  caiu no gosto popular (dos homens).  

 A meu ver, um dos grandes méritos do romance é saber que Jorge Amado, há sessenta e cinco anos, imaginou o fim da  impunidade para um gesto tão natural no machismo brasileiro quanto o de tomar um cafezinho, quando nem se sonhava  com a palavra feminicídio. Vale a pena ler de novo:

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DO ‘POST-SCRIPTUM’

Algum tempo depois, o coronel Jesuíno Mendonça foi levado a júri acusado de haver morte a tiros sua esposa, dona Sinhazinha Guedes Mendonça e o cirurgião-dentista Osmundo Pimentel, por questões de ciúmes. Vinte e oito horas duraram os debates agitados, por vezes sarcásticos e violentos. Houve réplica e tréplica, dr. Maurício Caires citou a Bíblia, recordou escandalosas meias pretas, moral e devassidão. Esteve patético. Dr. Ezequiel Prado, emocionante: já não era Ilhéus terra de bandidos,  paraíso de assassinos. Com um gesto e um soluço, apontou o pai e a mãe de Osmundo em luto e em lágrimas. Seu tema foi a civilização e o progresso. Pela primeira vez, na história de Ilhéus, um coronel do cacau viu-se condenado à prisão por haver assassinado esposa adúltera e seu amante.

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FIM

(Petrópolis-Rio, maio de 1958)”  

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