O ônus
O peso invisível de integrar o STF e a renúncia exigida pela mais alta Corte do país
Uma das poucas vantagens de já ter vivido muito é ter histórias para contar. E tenho várias.
Vendo o cerco que a imprensa hereditária (apoiada por veículos da chamada mídia alternativa que de maneira saltitante os republica) lembrei de várias conversas que tive com pessoas cogitadas para o Supremo Tribunal Federal.
Na maioria dos casos houve a frustração das expectativas, outro foi indicado, gerando inclusive insuperáveis ressentimentos. Em pelo menos 2 ou 3 casos, meus interlocutores acabaram sendo indicados e foram ou são ministros no STF. Mas aqui quero falar de um outro grupo. O de famosos juristas cogitados para o Supremo que me afirmaram categoricamente não terem interesse na nomeação porque - atentem para a dramaticidade da afirmação - queriam ter vida social.
Para não cometer nenhuma indiscrição não mencionarei nomes.
Ministro, uma vez nomeado, não tem ou não deveria mesmo ter vida de celebridade. Entre os argumentos utilizados pelos juristas que não aceitariam a cogitação da indicação, e sem hierarquizar os motivos, lembro:
- Não pode andar de avião de empresário ou de advogado que atua no tribunal onde será juiz. Nenhum juiz pode. No Supremo, menos ainda. Não pode porque não pode. Simples assim.
- não pode ter parentes advogando no mesmo tribunal onde oficia. Ou não deveria poder. Considero desnecessário reproduzir aqui os argumentos dos meus amigos que lembravam essa obviedade para recusar qualquer indicação;
- não consegue ter vida social pois, a partir da nomeação, o Ministro nunca mais terá a tranquilidade de acreditar em amizades sinceras. A quantidade de sabujos e de lobistas que assediam os integrantes das altas Cortes é quase infinita. Ministro do Supremo tem que se acostumar à bajulação sem se deixar seduzir. Há casos, no passado, de alguns que passaram até a acreditar nos elogios que recebem (esses são os piores) ou a desenvolver uma dependência em relação aos salamaleques. Conta-se, exemplificativamente, história de dois ex-ministros, muito vaidosos. Um deles exigia do seu gabinete que todos se levantassem quando ele entrava no ambiente de trabalho deles. Do outro é melhor nem falar, seria facilmente identificável por ser a personificação da vaidade togada e que hoje, esquecido, sofre da síndrome da maçaneta: havia se acostumado tanto a não ter que abrir as portas que acabou esquecendo como funciona o mecanismo dos trincos e maçanetas, segundo seus críticos.
- ao assumir o cargo de Ministro no STF o indicado e seus familiares nunca mais terão uma vida normal. Cada um dos onze integrantes do Olimpo judiciário tem que ter cuidados com a segurança pessoal (os riscos são óbvios) e de seus familiares. E a própria família passa a não ter vida social. Os riscos de violência física, de sequestros, de chantagens, são enormes. Seria um preço alto demais a pagar, segundo muitos dos meus amigos que chegaram a ser cogitados para o Supremo e que recusaram a honraria.
Há inúmeros outros motivos muitas vezes lembrados por quem chegou a ser cogitado e que se recusou. E não tiro a razão deles.
Também por essas razões levo muito a sério aqueles que, apesar desses enormes inconvenientes pessoais e familiares, aceitam servir ao país como Ministro ou Ministra do STF e permitem que seus nomes sejam cogitados e até eventualmente indicados.
A vida da pessoa muda inteiramente a partir da nomeação. Tem que ter um elevado espírito publico e uma enorme capacidade de renúncia às mais singelas coisas da vida privada (ir ao supermercado, à loja de vinhos ou de produtos sensuais, ao boteco de sempre com sua turma da adolescência). Não pode receber ninguém em sua casa, pois essa pessoa pode ter relações com advogados ou com réus. Não pode participar de almoços de fim de ano na praia com deputados e governador de extrema-direita.
Por estas e outras razões eu sempre desconfiei de quem queria muito ser Ministro do Supremo. Não poderia ser um bom juiz alguém que prometesse “matar no peito” certas ações caso fosse indicado; que pemitisse uma campanha com outdoors em seu Estado torcendo por sua indicação; ou que fomentasse campanhas pela sua indicação por critérios cromossômicos, genéticos ou étnicos. Essas posturas não combinam com a dignidade da função pretendida. Tem tudo para dar errado. E deu. E dará.
Verdadeiramente a vida dessas pessoas muda desde que a cogitação começa a se concretizar a indicação, pois há o terrível ritual de ratificação pelo Senado, quando muitas vezes se tenta constranger e comprometer o indicado. Não é pouca coisa. Uma pessoa ideologicamente frágil, com algum déficit de autoestima ou com certa consciência de sua debilidade em alguns ramos do Direito, pode sucumbir a acordos prévios e assumir compromissos apressados para obter a aprovação no Senado. Sempre penso nisso quando vejo algum nome sendo cogitado: qual é a capacidade teórica e qual é a capacidade de resiliência desta pessoa para se submeter com altivez à sabatina e, no futuro, aos assédios de lobbies jurídicos e pessoais, sem sucumbir às armadilhas da vaidade, da soberba e da arrogância.
Por tudo isso e por mais muitas outras situações repetia aos meus interlocutores quando eu ainda tinha alguma relevância neste debate sobre a composição do STF: ninguém é obrigado a ser ministro do Supremo; quem quer ser um dos onze integrantes da cúpula do Judiciário tem que ter um enorme espírito de renúncia, com muito mais perdas do que os eventuais ganhos em suas vidas e em suas relações. Disse a vários postulantes que todo ministro será condenado à solidão, pois não poderá ter vida social normal, não poderá passear em jatinhos de empresários, não poderá organizar ou participar de congressos financiados por bancos ou empresas com interesses judiciais que tramitam no STF, não poderá participar de rega-bofes com a elite econômica, não poderá frequentar a festa de aniversário de cantores em iates nem frequentar um determinado tipo de evento social que no passado era conhecido como “festa da cueca”.
Nem sempre fui ouvido, admito. Mas nas poucas vezes em que meus alertas foram considerados, o resultado me deixou satisfeito. Seja em relação a um ou dois que exerceram e exercem com honra a judicatura suprema, seja em relação a quem, consciente de que as perdas são infinitamente maiores que os ganhos, com meu apoio, seguem dispostos a abrir mão de suas vidas pessoais para integrar o STF, seja em relação àqueles que tendo sido cogitados preferiram fazer chegar a quem indica seu desinteresse pelo cargo.
Ser ministro do Supremo é (ou deveria ser) um ônus, um pesado encargo com grandes perdas na vida pessoal e familiar, para quem aceita a mais nobre missão entre todas as possibilidades de exercício desta honrosa função pública vitalícia. Quem o aceita, o faz porque quer. Não pode nem reclamar, nem levar a vida como se fosse qualquer um de nós. Se o fizer estará errando. Errando feio.
Por tudo isso, parece oportuna a criação de um código de ética e de conduta para todos os integrantes do Poder Judiciário, a começar pelo Supremo Tribunal Federal. Tem muita coisa errada. Mas não há impedimentos. A questão do que pode e do que não pode ainda não está regulamentada. Parece ser urgente essa regulação, para a defesa das próprias instituições e da democracia no Brasil, atualmente sob ataque da extrema-direita, de veículos de comunicação a ela associados e de jornalistas antiéticos.
Assim como deveria ter um código de ética para todos os jornalistas e para todos os veículos de comunicação (da mídia hereditária e também da mídia alternativa) que os obrigasse a tratar todos os Ministros do STF da mesma maneira, sem essa seletividade aparente que visa atacar apenas dois dos Ministros com imputações que caberiam à maioria dos integrantes da mais alta Corte do Judiciário brasileiro. Acusam apenas dois daquilo que não é uma postura exclusiva deles. Mas esta é outra história.
Xixo, 28 de dezembro de 2025
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




