Querem imputar crimes de hermenêutica aos ministros do Supremo
É fácil entender que não pode constituir crime interpretar a lei, ainda que a interpretação seja controversa
O programa de entrevistas de William Waack, com sua carranca, na CNN Brasil do último domingo (21) foi muito bom. Não graças ao entrevistador, que forçou o quanto pôde alguma declaração que estimulasse o impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal, mas graças à qualidade dos entrevistados.
No WW estiveram o jornalista Felipe Recondo, maior conhecedor das idiossincrasias supremas do Brasil; o professor da USP e colunista da Folha de S. Paulo Conrado Hübner Mendes, crítico ácido e correto das condutas pouco éticas de integrantes do Judiciário e também da advocacia; e o jurista e desembargador aposentado Wálter Fanganiello Maierovitch, onipresente na mídia, hoje colunista do UOL e comentarista da rádio CBN, e que costuma explicar didaticamente os ritos processuais cumpridos ou desobedecidos.
Os três mostraram conhecimento e honestidade intelectual ao tecerem críticas ao comportamento individualizado de certos ministros do STF – não de todos –, acerca de práticas bastante conhecidas, como a participação em seminários, regabofes e viagens bancados por, digamos, potenciais réus em ações naquela corte, o uso e o abuso de estratégias para fazer prevalecer posições individuais sobre o plenário, a falta de regra clara e obrigatoriedade para que um ministro declare-se impedido de atuar em certas causas, a volúpia em dar depoimentos públicos sobre casos concretos em julgamento e outras impropriedades éticas e morais.
Nenhum deles, contudo, colocou o STF como violador das atribuições do Congresso Nacional, este no alto da mais sinistra composição da sua História e praticante contumaz de inconstitucionalidades, tampouco questionou a atuação do tribunal nos processos que levaram os golpistas para a cadeia. Recondo, Hübner Mendes e Maierovitch deixaram claro que o Supremo carece de regras de conduta para seus componentes, mas que não se pode pensar em pressioná-los acenando com crimes de hermenêutica (apesar não terem usado esse termo), algo que não existe no Brasil nem nas outras democracias do mundo.
Criminalizar a hermenêutica seria punir juízes por sua decisão, por seu julgamento em determinado processo. Não existe nada parecido no ordenamento jurídico brasileiro nem na maioria dos ordenamentos jurídicos. Se existisse, o magistrado não estaria livre para interpretar a lei, ou seja, para exercer sua função. A divergência interpretativa motivaria denúncia criminal.
É fácil entender que não pode constituir crime interpretar a lei, ainda que a interpretação seja controversa, minoritária ou posteriormente reformada. A independência funcional de magistrados – e também de membros do Ministério Público - protege a atividade interpretativa. A Lei Orgânica da Magistratura (Loman) e a Constituição asseguram que o juiz não responde por suas decisões, salvo nos casos de dolo (intenção de fraudar), corrupção, fraude processual e erro grosseiro com má-fé.
O que pretende a direita abjeta representada no Congresso, e que tantas vezes fermenta-se pelo oportunismo do Centrão, é sentir-se livre para pedir afastamento de juízes toda vez que uma decisão lhes for inconveniente, buscando argumentos para caracterizá-la como criminosa por divergente em termos de interpretação da lei.
Não existe e espera-se que nunca exista no ordenamento jurídico brasileiro o medieval crime de hermenêutica. Claro está, de outra parte, que venda de decisões, perseguição política travestida de decisão judicial, abuso de autoridade e atuação contra o texto legal de forma deliberada nada têm a ver com hermenêutica. Não nos parece que os ministros do corte constitucional brasileira ajam dessa forma.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




