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Sara York

Sara Wagner York (também conhecida como Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior) é bacharel em Jornalismo, doutora em Educação, licenciada em Letras – Inglês, Pedagogia e Letras Vernáculas. É especialista em Educação, Gênero e Sexualidade, autora do primeiro trabalho acadêmico sobre cotas para pessoas trans no Brasil, desenvolvido em seu mestrado. Pai e avó, é reconhecida como a primeira mulher trans a ancorar no jornalismo brasileiro, pela TV 247

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O que acrescenta Lady Gaga ao Brasil?

Hipervigilância, isolamento e a arte como refúgio: Gaga como espelho de uma sociedade em crise

Lady Gaga ensaia um dia antes de seu show na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro (Foto: Reuters/Pilar Olivares)

Na noite em que Lady Gaga se apresenta no Rio de Janeiro, na icônica praia de Copacabana, o Brasil se vê diante de um espetáculo que é muito mais do que música. É um acontecimento simbólico  de cultura pop, de corpos dissidentes, de celebração coletiva e, paradoxalmente, de hipervigilância e exclusão. A pergunta que paira no ar não é apenas "O que Lady Gaga acrescenta ao Brasil?", mas sim: “como o Brasil responde ao que Gaga nos oferece?”.

Em meio às buzinas das grandes cidades brasileiras, aos debates acalorados nas redes sociais e às pressões crescentes do desempenho, emerge uma pergunta que pode parecer inusitada, mas carrega em si uma provocação profunda: repito, o que acrescenta Lady Gaga ao Brasil?

Mais do que uma diva pop ou fenômeno midiático, Lady Gaga representa uma chave simbólica para entender nossa era marcada por hipervigilância, solidão e resistência estética. Sua arte transcende o entretenimento e toca em questões existenciais, sociais e políticas que se tornam cada vez mais urgentes também por aqui.

Hipervigilância, isolamento e arte - Lady Gaga é, desde o início de sua carreira, um corpo estranho à normatividade. Sua trajetória marcada por bullying, reclusão e criação artística dentro do isolamento emocional e familiar, revela muito sobre o que se tornou viver no século XXI. Em uma sociedade cada vez mais conectada, somos também cada vez mais isolados. A hipervigilância  -  essa necessidade permanente de antecipar riscos, de moldar comportamentos, de estar pronto  -  cria uma nova forma de subjetividade: intuitiva, adaptativa, mas profundamente solitária. Aliás essa intuição para o bem ou para o mal, me parece muito mais as condições pelas quais, enquanto crianças, tentávamos prever ou antecipar as ações daqueles que nos cercavam.

Gaga transforma esse processo em arte. Seu piano é trincheira. Sua performance, armadura. Sua imagem, linguagem política. Ao chamar seus fãs de "little monsters", Gaga escancara o espelho da monstruosidade imposta pela norma. E nessa monstruosidade compartilhada, cria-se um laço, uma comunidade  -  talvez um refúgio. Chamo inclusive de zona de conforto, como prévia da luta, zona de confronto… 

Stefani Joanne Angelina Germanotta  -  o nome por trás da persona Lady Gaga  -  teve sua infância marcada por experiências de exclusão. Vítima de bullying por ser "estranha demais", encontrou no piano e no refúgio do quarto a força criativa que mais tarde explodiria nos palcos do mundo. Gaga não apenas sobreviveu ao isolamento: ela o transformou em arte. E nesse gesto, reside uma das lições mais valiosas que ela oferece ao Brasil.

"Eu nasci assim!", uma quase sentença a quem culpa os diferentes a irem conversar e discutir com Deus. Se estou torto, fora da norma e contra a validação, sinto muito, mas, nasci assim… 

Um país que, assim como ela, convive com profundas desigualdades, exclusões sociais e preconceitos. Um país onde muitas pessoas, especialmente as dissidentes de gênero, sexualidade ou classe, encontram no isolamento forçado uma condição de existência. Gaga, ao reivindicar seu próprio "monstrinho interior", cria espaço para que outras "aberrações sociais"  -  para usar o termo de Paul B. Preciado  -  se reconheçam como dignas de amor, do palco, da vida em sua integralidade e de visibilidade.

O filósofo e ativista trans Paul Preciado certa vez disse, em crítica à sociedade psicanalítica parisiense, que se sentia como um "monstro". Gaga apropria-se dessa palavra e, ao fazê-lo, desloca o estigma e lhe confere potência. O que antes era motivo de vergonha torna-se identidade coletiva. Mas o que acontece quando essa monstruosidade pede lugar nos espaços institucionais?

Um show livre, uma praia pública, uma porta fechada - O show de Lady Gaga no Rio foi anunciado como gratuito, democrático, livre. Um encontro popular. Mas há liberdades que ainda não atravessam os bastidores. Escrevi à organização solicitando o credenciamento para a cobertura jornalística do evento, destacando a importância da representatividade na imprensa  -  sobretudo em um evento público, com chancela da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, de Eduardo Paes.

A resposta foi: entre em contato com a organização do evento. Ponto para prefeitura de Paes! Em contato dez dias antes, a organizadora do evento foi clara: o prazo havia se encerrado. Até aí, compreensível. Mas o problema não estava no prazo. Perguntei então sobre a cobertura ser feita por uma travesti, PcD e jornalista, e se teria inclusão prática. A resposta torta veio na frase da organizadora da empresa IPEAMARELO: "não incluímos nenhum formulário de credenciamento esse tipo de questionamento, pois não tem interferência na definição dos credenciados”.

Essa frase revela um abismo. Revela que a diversidade de quem cobre um evento -  de gênero, raça, território, identidade, deficiência  -  ainda é considerada "irrelevante" no jornalismo institucionalizado. E esse é o ponto em que a arte e a política colidem.

A inclusão no jornalismo não é detalhe , é estrutura - Se Lady Gaga canta para "monstrinhos", por que a imprensa que cobre seu show é composta apenas por "anjos normativos"? Se o evento é da cidade, por que a cidade real não está lá? Travestis, pessoas trans, jornalistas negras, pessoas com deficiência, jornalistas das periferias do Rio  -  por que essas vozes seguem sendo barradas nas credenciais?

A diversidade na imprensa tem interferência. Não apenas na forma como a notícia é contada, mas no que se escolhe contar. Um jornalista cis branco pode cobrir os fogos de artifício. Uma jornalista travesti talvez fale sobre como a plateia gritava ao ver dois corpos queer se beijando sem medo. Um jornalista da zona sul talvez destaque a presença de celebridades. Um repórter da zona oeste talvez conte sobre as dificuldades de transporte para chegar à praia  -  e sobre como isso afasta os mais pobres mesmo em shows "gratuitos".

Mais do que cobrir o show, essas vozes podem cobrir o que ele representa  -  para quem nunca se viu representado, para quem nunca foi chamado de "monstrinho" com carinho, para quem dança na contramão da norma e sobretudo, posta inclusão nas redes.

O papel da gestão pública e o compromisso com a representatividade - O Rio é plural. E o jornalismo que cobre o Rio precisa sê-lo também. Quando a Prefeitura apoia um evento e organiza sua comunicação, ela está, indiretamente, dizendo: "essas são as vozes autorizadas a contar a história da cidade”. Excluir as vozes dissidentes é um ato político. É reforçar um único ponto de vista, é reduzir o Brasil a um estereótipo vendável.

Lady Gaga acrescenta ao Brasil a coragem de performar o próprio monstro, a arte como redenção da dor, a potência de um corpo que brilha onde antes sangrava. Mas o Brasil só poderá, de fato, absorver o que ela oferece se houver abertura para escutar  -  não apenas os acordes, mas as vozes dissonantes.

A cobertura jornalística de eventos públicos precisa urgentemente de uma nova política: inclusiva, interseccional, anticapacitista, antirracista, transfeminista. Isso não é "ideologia". É verdade. É realidade. É justiça.

Esperei até a noite do dia 2 de maio de 2025 pela resposta das secretarias do município do Rio de Janeiro, esperei o e-mail da empresa IPEAMARELO e da gestora que me respondeu com rapidez com os "nãos", mas manteve silêncio as minhas ponderações como apresentado acima. 

Uma lente para o agora: inclusão como marketing - Lady Gaga acrescenta ao Brasil uma lente. Uma lente para enxergar a dor coletiva através da expressão artística. Uma lente para entender que hipervigilância e isolamento não são desvios, mas sintomas de um sistema que nos adoece. E, talvez, uma lente para imaginar saídas possíveis  -  onde a arte, a performance e a identificação com os "monstros" possam se tornar não só um grito, mas um abraço.

Gaga nos lembra que há beleza no colapso, potência no desvio e futuro naquilo que ainda não conseguimos nomear. E se o Brasil souber escutá-la, talvez possa transformar seus próprios fantasmas em algo digno de aplauso.

As experiências de bullying vividas por Lady Gaga, o apoio incondicional de seus pais e a origem da metáfora dos "monstrinhos" estão documentadas em entrevistas, documentários como Gaga: Five Foot Two, e em sua biografia. A crítica de Paul B. Preciado à patologização das diferenças e ao modelo normativo da psicanálise parisiense é amplamente divulgada em suas obras, como Um Apartamento em Urano. A relação entre hipervigilância e isolamento, embora debatida academicamente, tem sido observada por especialistas em psicologia e sociologia como um fenômeno contemporâneo relevante.

Que Gaga brilhe em Copacabana. Que seus monstrinhos se reconheçam, se abracem, se libertem. Eu mesma estarei por lá aplaudindo o presente que o futuro político do município tem entregue para garantir sua popularidade. Mas que saibamos olhar também para fora do palco: para quem não foi credenciado, para quem não foi ouvido, para quem não teve acesso. Porque a revolução de Lady Gaga não está apenas na música. Está, sobretudo, no direito de cada "monstro" ser reconhecido como parte da cidade.

E nisso, o jornalismo tem um papel inegociável! 

Referências:

https://www.instagram.com/p/DJKrS2nPyVH/?utm_source=ig_web_copy_link

https://sarawagneryork.medium.com/lady-gaga-rj-sobre-credenciamento-e-a-import%C3%A2ncia-inegoci%C3%A1vel-da-inclus%C3%A3o-no-jornalismo-para-efdd66230162

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.