O vício da certeza do extremista: como a verdade virou ódio político?
Fanatismo político transforma convicções em trincheiras digitais e sufoca o diálogo racional
A história da ciência e da humanidade é recheada de momentos em que uma verdade solitária colidiu com um mundo de certezas estabelecidas. Nessa colisão, o destino do inovador frequentemente se divide entre a glória da descoberta e o ostracismo da loucura. Mas há uma lição ainda mais profunda a ser extraída dessas narrativas: a importância de se manter fiel à própria convicção, mas com a sabedoria de não se tornar um prisioneiro dela.
A tragédia de Ignaz Semmelweis, no século XIX, é um retrato pungente desse paradoxo. Em uma época em que a febre puerperal ceifava a vida de incontáveis mulheres após o parto, a comunidade médica, em sua arrogância e dogmatismo, estava cega para a causa. Foi Semmelweis, um médico obstetra, quem percebeu a conexão mortal entre a manipulação de cadáveres por médicos e a infecção das parturientes. Sua solução, que hoje nos parece óbvia, foi revolucionária: a simples lavagem das mãos com uma solução de cloro. O resultado foi um declínio drástico da mortalidade em sua clínica.
No entanto, o que deveria ser a sua coroação foi o início de seu calvário. Seus pares, escravos de uma "verdade" que associava a sujeira à pobreza e não à doença, rejeitaram suas descobertas com desprezo. A ideia de que as mãos dos nobres médicos pudessem ser a causa da morte era um ataque direto à sua autoridade e status. Como homens tão sábios poderiam “matar” mulheres tão pobres? A verdade de Semmelweis, embora salva-vidas, era socialmente inaceitável. Ele morreu desacreditado, internado em um asilo, vítima de uma sociedade que preferiu a certeza do erro à incerteza de um novo paradigma.
A história de Semmelweis nos leva a um questionamento crucial. Sua firmeza em defender sua tese, apesar da rejeição, foi o que o tornou um precursor. Mas sua incapacidade de negociar com o establishment, de encontrar uma forma de comunicar sua descoberta que não fosse vista como um ataque pessoal, foi o que o consumiu. A verdade, por mais pura que seja, pode se tornar uma prisão se o indivíduo se recusa a entender o contexto em que ela precisa ser apresentada. A intransigência, nesse caso, não serviu para convencer, mas para isolar. Ele foi escravo de sua própria certeza, perdendo a visão estratégica necessária para que sua luz fosse vista.
Em um mundo onde as verdades se fragmentam e se multiplicam a cada clique, onde as redes sociais se tornaram pilhas que confirmam eternamente nossas certezas e verdades pré-concebidas, a lição de Semmelweis é mais atual do que nunca. No Brasil contemporâneo, essa dinâmica digital transformou a polarização política em algo visceral: o antipetismo, o lulismo, o trumpismo, o identitarismo e o bolsonarismo se tornaram moedas de grande valor, alimentados por algoritmos que nos aprisionam em bolhas de confirmação, onde cada scroll reforça aquilo em que já acreditávamos.
E então, parece que estamos falando com um outro burro, ignorante — mas será?
É preciso ter a coragem de defender uma ideia que rompe com o senso comum, de ver o que os outros se recusam a enxergar — mesmo quando isso significa confrontar não apenas opiniões contrárias, mas sistemas inteiros de crenças políticas cristalizadas pelas câmaras de eco digitais. Mas é igualmente vital possuir a sabedoria de distinguir entre a teimosia e a convicção, entre a firmeza e a cegueira ideológica que as redes sociais tanto facilitam.
Assim como Semmelweis enfrentou a resistência médica de sua época, hoje enfrentamos a resistência de tribos políticas digitais que se recusam a questionar suas próprias narrativas. A verdadeira maestria reside não apenas em possuir a verdade, mas em saber como libertá-la do cativeiro de nossas próprias obsessões políticas e das armadilhas algorítmicas que nos mantêm presos em ciclos de confirmação, para que ela possa, finalmente, servir a todos — independentemente de cores partidárias.
A história nos mostra que a verdade de Semmelweis venceu, mas a tragédia de sua vida nos lembra que o caminho até lá é solitário e exige mais do que apenas coragem: exige uma profunda inteligência sobre como o mundo se move, especialmente em uma era em que as redes sociais amplificam paixões políticas e transformam divergências em trincheiras digitais aparentemente intransponíveis.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

