Ricardo Queiroz Pinheiro avatar

Ricardo Queiroz Pinheiro

Bibliotecário e pesquisador, militante do livro e leitura, doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC)

35 artigos

HOME > blog

Politizar

O que vimos no domingo, na Paulista e em outras cidades do Brasil, pode e deve ser comemorado, só não pode ser visto como fruto de magia

Ato na Avenida Paulista, em São Paulo, contra anistia e a PEC da blindagem - 21/09/2025 (Foto: REUTERS/Amanda Perobelli)

É importante entender um momento político. É importante que pensemos de forma sóbria sobre os acontecimentos, sobretudo quando há uma catarse, um movimento de pessoas contra uma ideia que parece surgir do nada. A sobriedade é necessária para não confundir sinais com soluções, nem vitalidade com projeto. O que vimos no domingo, na Paulista e em outras cidades do Brasil, pode e deve ser comemorado, só não pode ser visto como fruto de magia.

A cena teve vigor. Havia diversidade no público, rostos que não costumam se ver em manifestações. Essa vitalidade, em si, é significativa. O que me preocupa é o excesso de deslumbramento. Mas é preciso resistir à tentação de comparações fáceis, como a que coloca esse episódio lado a lado com as Diretas Já e outros momentos vigorosos da história brasileira. Ali houve acumulação política, social, cultural; não existe explosão instantânea que se iguale a isso.

Quando se insiste nesse paralelo, acaba-se por reduzir tanto a densidade do passado quanto a complexidade do presente. O gesto que poderia ser analisado em seus próprios termos é embalado em mito. E o mito, em política, tem sempre dois lados: inspira por um momento, mas desarma no dia seguinte.

O que emergiu de forma mais clara foi o cansaço. Um cansaço social, difuso, que empurrou pessoas para a rua. Esse cansaço não pode ser desprezado: ele é real, ele mobiliza. Mas tampouco pode ser romantizado. Sem projeto, vira apenas exaustão coletiva, incapaz de sustentar transformações e que costuma ser tragado por soluções traiçoeiras.

A lição de 2013 já deixou isso claro. A energia difusa foi poderosa, mas se perdeu em dispersão, contradição e captura. O espontaneísmo pode incendiar, mas sem organização é rapidamente desviado para servir aos mesmos operadores que azeitam a crise. Essa é a armadilha que ronda qualquer catarse social.

É verdade que os partidos não têm estado à altura. Projetos frágeis, lideranças aquém do que a sociedade pede. Mas a conclusão não pode ser a demonização da política. É com mais política que se constrói saídas, não com menos. O vazio sempre será ocupado — e, sem organização popular, será ocupado pela perpetuação daquilo que agride.

O realismo mágico existe sim, necessário, em Maria Luisa Bombal, García Márquez e no nosso Murilo Rubião. São eles que transformam o improvável em cotidiano, deixando a magia entranhar-se na vida comum. Houve quem preferisse ler a Paulista como espetáculo, mas o que se viu ali não foi celebração: foi um cansaço social tentando ganhar forma e direção em busca de saída política.

E aí Rubião nos ajuda a compreender, em seu conto clássico O Ex-Mágico da Taberna Minhota: “Senti-me, de repente, fatigado e velho. Meu poder não tinha sentido: era inútil, sem objetivo. Desencantado, resolvi abandonar a magia.” A magia da literatura nos lembra do limite dos encantos — e nos obriga a manter os pés no chão com a magia do cotidiano.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Artigos Relacionados