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Carlos Carvalho

Doutor em Linguística Aplicada e professor na Universidade Estadual do Ceará - UECE.

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Porque eu sou o outro

Assim, a recorrente morte do Mineirinho não acalma o coração de ninguém, pois, parafraseando Rupi Kaur, os mineirinhos nascem e renascem todos os dias, pois são fraturas expostas de uma nação em agonia. Morto Mineirinho, fingimos que agora está tudo bem, mas nem notamos que estamos em pé nas poças do seu sangue.

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A agudização da violência no Brasil contemporâneo tem raízes profundas que remetem ao período colonial, passando pelo Brasil Império, resultando na realidade que se vê, ou seja, trata-se de um fenômeno histórico, para o qual nunca se pensou uma solução, a não ser paliativos arranjos sociais. Assim sendo, a ausência de políticas públicas sérias de combate à violência contribuiu para o aumento da violência urbana no país, tendo em vista o imenso abismo da desigualdade social que se instalou na sociedade brasileira ao longo dos tempos. Neste sentido, ao se mostrar incompetente e alheio no que diz respeito à proposição de políticas públicas inclusivas, o Estado brasileiro acostumou-se a normalizar a situação, excluindo e criminalizando os mais pobres, contribuindo assim para o aumento da população carcerária e a estigmatização do povo negro. Nesse contexto, destaca-se a violência policial, que tem sido recorrente, tendo como vítimas preferenciais os pobres, pretos e marginalizados. 

Atenta às questões nacionais e preocupada com o aumento da violência urbana, já no ano de 1962, Clarice Lispector escreve uma crônica chamada “Um grama de radium – Mineirinho”, que lhe havia sido solicitada pelo conselho editorial da revista Senhor, para a qual Clarice escrevia desde 1958. A narrativa é sobre a morte, no Rio de Janeiro, de um perigoso bandido chamado José Miranda Rosa, que por ter nascido em Minas Gerais, atendia pelo apelido de Mineirinho. Mineirinho tornou-se figura famosa naqueles anos por suas insistentes e perigosas infrações. Diz-se que Mineirinho assaltava à luz do dia e que não temia a polícia. Havia registro de que Mineirinho já fugira algumas vezes da cadeia e tantas outras do Manicômio Judiciário. Somadas todas suas condenações, diz-se que Mineirinho tinha pelo menos um século de prisão a cumprir. Contudo, a população tinha em Mineirinho, um herói, uma espécie de Robin Hood, o que desagradava ainda mais os órgão de segurança pública. Assim, com o objetivo de recapturar o fugitivo Mineirinho, a Polícia Militar do Rio de Janeiro montou uma força-tarefa com mais de trezentos homens. O resultado da operação é que, encurralado pela polícia, Mineirinho foi morto com nada menos que treze tiros. 

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Ao abordar esse assunto em sua crônica, Clarice Lispector se mostra indignada com banalização da violência policial e a ausência de justiça no país. Naquela época, nem passava pela cabeça da autora que uma pessoa, em pleno século XXI, pudesse ser morta por oitenta, noventa ou até cem tiros, por forças militares pagas para servir e proteger, sem ninguém ser responsabilizado, muito menos condenado por isso. A crônica “Um grama de radium – Mineirinho”, seria publicada pela primeira vez em livro, no ano de 1978, em Para não esquecer, com o nome “Mineirinho”. Sobre como se sentiu acerca do assassinato de Mineirinho, a narradora disse: “Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.Na rara entrevista que concedeu à TV Cultura no ano de 1977  https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU, ao falar sobre o caso Mineirinho, Lispector declarou que qualquer que fosse o crime dele, uma bala bastava. O resto, disse ela, era vontade de matar. Era prepotência. Note-se aqui, que a autora já criticava os excessos da violência policial na década de 60, denunciando o modus operandi do Estado ao eliminar os indesejáveis ao sistema, geralmente bandidos pobres, descumprindo, para tanto, as leis, e ignorando a justiça, em flagrante desrespeito ao Estado de Direito. Observe-se que, desde a primeira publicação da referida crônica, os casos de violência policial no Brasil só aumentaram, fazendo com que o país tenha hoje uma das polícias que mais letais do mundo, o que já se constitui como um problema de saúde pública, conforme aquilo que determina a Organização Mundial de Saúde.

Assim, a recorrente morte do Mineirinho não acalma o coração de ninguém, pois, parafraseando Rupi Kaur, os mineirinhos nascem e renascem todos os dias, pois são fraturas expostas de uma nação em agonia. Morto Mineirinho, fingimos que agora está tudo bem, mas nem notamos que estamos em pé nas poças do seu sangue. 

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