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Pedro Simonard

Antropólogo, documentarista, professor universitário e pesquisador

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Precisamos debater a democracia (1/2)

A democracia é o governo do povo para o povo. Estes autores liberais parecem não levar em conta esta assertiva e naturalizam o exercício da dominação da minoria sobre a maioria, explicitando sua origem de classe, sua identidade de classe ou ambas

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A ascensão de governos fascistas ou protofascistas mundo afora desencadeou uma discussão sobre a democracia e os riscos que governos autoritários dos mais diversos matizes lhe impõem. Seguindo uma tradição que remonta a Alexis de Tocqueville, a discussão, na ampla maioria dos casos, se concentra na forma, na aparência da democracia e não aprofunda-se naquilo que, de fato, caracteriza uma democracia. 

A democracia é o governo do povo para o povo e cabe perguntar se a democracias liberal burguesa cumpre este desígnio. Como se deve medir o grau e a eficácia de uma democracia? Pela participação popular nas instituições que regulam o Estado e os governos, pelo controle dessas instituições pela maioria ou devemos medi-la tendo por base a qualidade de vida de um povo, seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), por exemplo? Este índice busca aferir o grau de desenvolvimento de determinada sociedade nos quesitos educação, saúde e renda. Ele é o resultado da combinação de três dimensões: uma vida longa saudável, a expectativa de vida ao nascer de uma população; o acesso ao conhecimento por meio da análise dos anos médios de estudo e anos esperados de escolaridade; o PIB (PPC) per capita. Um IDH mais alto não mostraria que um Estado nacional seria mais democrático, já que assegura a seu povo um alto padrão de vida e esse IDH refletiria a organização do povo em prol da defesa de seus direitos?

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Alguns autores escreveram conceituados estudos sobre a democracia. Em sua obra A democracia na América (1832), Alexis de Tocqueville analisa as instituições democráticas do EUA no começo do século XIX. Surpreendeu-se com o que definiu como a “igualdade de condições”, uma “igualdade quase completa” que reinava entre os cidadãos estadunidenses que teria feito com que governantes e governados desenvolvessem e assumissem novos hábitos. Esta igualdade teve como consequência a manifestação da soberania do povo, princípio gerador das treze colônias que originaram os EUA. A escolha daqueles que fazem as leis e daqueles que as executam, ou seja, a escolha dos representantes do povo por ele mesmo comprovaria esta soberania popular e seu exercício.

Segundo Tocqueville, povos democráticos teriam um amor mais ardente e duradouro pela igualdade e pela liberdade. A liberdade gerou a igualdade de condições. O fortalecimento da igualdade permitiu a manifestação do individualismo um risco para a convivência harmônica entre os cidadãos. A liberdade, consequência da igualdade, combate o individualismo por meio da liberdade de participação política do povo e do poder de ingerência deste nos assuntos públicos e na política, instâncias que afetam os assuntos privados dos indivíduos. Desta maneira, a tendência individualista e outros riscos à convivência democrática igualitária são colocados sobre controle pelo grupo social.

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Tocqueville é considerado até hoje um autor fundamental, um clássico nos estudos da democracia moderna, mas impressiona em sua análise a invisibilidade a que ele relegou os afro-americanos e africanos que viviam no país nos onze meses em que ele morou lá, entre abril de 1831 e março de 1832. Sua análise fica comprometida pela naturalização da escravidão. Soa incongruente aclamar a democracia, a liberdade e a igualdade quando o censo realizado nos EUA em 1830 mostrou a existência de mais de 2 milhões de escravizados em uma população de cerca de 12,8 milhões habitantes, ou seja, perto de vinte por cento da população do país estava excluída do usufruto das benesses proporcionadas pelas instituições democráticas estadunidenses. Desta maneira, a análise da democracia liberal burguesa estadunidense elaborada por um liberal francês mostra que, para o liberalismo político e econômico, a escravidão não era - e continua a não ser - um problema, é algo aceitável no contexto das relações de produção capitalistas, enquanto estas puderem satisfazer-se com o mercado consumidor formado pelos cidadãos brancos. A escravidão foi combatida nos EUA somente a partir do momento em que a burguesia industrial do país necessitou libertar os escravizados para aumentar o mercado consumidor para seus produtos e, para isto, precisou assalariar os trabalhadores negros. Contudo, como sabemos, isto não foi suficiente para gerar igualdade entre brancos e negros no território do país.

Faltou a Tocqueville aprofundar-se nas análises dos conceitos liberdade e igualdade e faltou-lhe, sobretudo, deslocar-se de seu local de fala de homem branco oriundo da nobreza francesa para poder entrever e criticar a falta de liberdade e de cidadania a que estavam relegados os escravizados da sociedade que tanto o cativara.

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Hans Kelsen é outro autor que dedica-se ao estudo da democracia. Para ele, a democracia exige a liberdade e a igualdade e pressupõe a “aversão” em ser comandado por um igual. As necessidades práticas de convivência e de gestão exigem a resolução desta “aversão” e impõe uma modificação ao princípio de liberdade que deixa de ser entendida como a ausência total de domínio e passa a ser percebida como a autodeterminação política do cidadão. Na democracia liberal burguesa, a liberdade natural transforma-se em liberdade social ou política e o indivíduo passa a sujeitar-se a uma ordem normativa por meio de representantes eleitos por ele. Esta é a base da democracia liberal burguesa que, segundo Kelsen, é a única capaz de resolver pacificamente os conflitos de classe.

O Estado democrático surge da vontade coletiva em assegurar a liberdade social que só pode ser exercida por meio da vontade geral. O indivíduo é obrigado a obedecer à vontade geral representada pelo Estado. Este obriga o indivíduo a “ser livre” quer dizer, a abrir mão de sua liberdade natural e submeter-se à liberdade coletiva, ao Estado. 

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A democracia é realizada pelo povo, unidade e sujeito do poder. Para ocupar esta posição de sujeito, o povo necessita participar da criação da ordem estatal e aqueles que não possuem direitos políticos estão excluídos do usufruto dos direitos que esta ordem assegura. Como a democracia direta é impossível no entender de Kelsen, os indivíduos precisam recorrer à “ficção” da representação via eleição de representantes parlamentares. Kelsen reconhece que há um problema no parlamento que advém do fato de que os parlamentares tornam-se independentes do povo após sua investidura na função legislativa. Isso só pode ser resolvido com o aperfeiçoamento dos instrumentos de controle do povo sobre os parlamentares eleitos. Para Kelsen, o parlamentarismo é o melhor sistema de governo no regime democrático porque impede o “domínio” de uma classe sobre a outra e protege os interesses da minoria na medida em que todo partido político que consegue um assento no parlamento adquire o direito de ser neste representado e pode, deste maneira, defender os interesses das minorias políticas.

Kelsen desenvolve uma abordagem positivista e formal da democracia. Entende que o Estado democrático surge da vontade coletiva, mas não explica porque nesta predomina a vontade dos grupos economicamente hegemônicos nem como estes conseguem influenciar e impor sua vontade particular como se fosse a vontade da maioria. Propõe uma série de instrumentos de controle e de exercício democráticos para impedir o domínio de uma classe ou de um grupo social sobre outros, mas concentra a maior parte destes instrumentos no parlamento, transformando a luta política em uma luta controlada, uma espécie de jogo de salão, sem propor instrumentos que impeçam que o poder econômico interfira na eleição dos representantes nem nas discussões parlamentares.

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No livro Como as democracias morrem, Daniel Ziblatt e Steven Levitsky buscam analisar porque os instrumentos de exercício e controle democráticos permitem a eleição de líderes autoritários de direita, cujo objetivo primordial é enfraquecer ou acabar com a democracia e a participação popular, utilizando o aparato legal para alcançar estes objetivos. Eles concluem que a própria democracia leva ao seu próprio fim quando seus mecanismos de defesa não são efetivos o suficiente para impedir a chegada de demagogos autocratas ao poder.

Líderes autocráticos alcançaram o poder recentemente por meio do voto popular, habilmente utilizando-se das instâncias democráticas que tanto criticam. São líderes de massa e construíram sua ascensão sustentados por um discurso anti-establishment, “contra tudo isso que está aí, talkey?”, contra os “políticos tradicionais”, como os antipolítica.

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Ziblatt e Levitsky propõem quatro indicadores que permitem identificar comportamentos autoritários que são 1. a crítica às regras do jogo democrático, 2. a negação da legitimidade de seus oponentes, considerados como subversivos, criminosos, corruptos e antipatriotas, 3. a tolerância e o incentivo à violência somada à convivência com grupos armados, 4. a propensão à restrição das liberdades civis como a liberdade de imprensa, por exemplo. A não aceitação da derrota político-eleitoral leva os autoritários a criticarem as normas que regulam as relações políticas. Quando são suficientemente hegemônicos, alteram estas regras para dificultar a existência de seus adversários políticos.

Para estes autores, os partidos são os “guardiães da democracia” porque são os responsáveis pela escolha dos candidatos que concorrerão aos cargos públicos. Desqualificam o papel do povo no processo democrático, transformando-o em mero apêndice, cuja função principal é legitimar as escolhas dos partidos políticos. Esta proposta elitista e antipopular fica evidente quando Ziblatt e Levitsky lamentam que, no caso dos partidos políticos estadunidenses, a indicação dos candidatos que concorreram às eleições tenha sido transferida dos chefes partidários para delegados eleitos o que teria facilitado a candidatura de candidatos que não fazem parte da estrutura partidária. Para eles, o crescente número de candidatos que não fizeram carreira partidária e que concorrem às eleições é um problema porque são pouco afeitos à disciplina e ao programa dos partidos.

Ziblatt e Levitsky aceitam de maneira natural pressupostos que precisam ser analisados. Antes de escrever como as democracias morrem estes autores precisariam analisar como elas nascem para perceber que defendem uma série valores que, na democracia liberal burguesa, estão eivados por princípios classistas – parlamento, partido político, congresso, judiciário entre outros – que eles tomam como naturais. Propõem como forma de defender a democracia “a restauração das normas de tolerância e reserva mútua”, princípios éticos e morais de atuação política. A oposição e o embate democrático devem ocorrer no Congresso, nos tribunais, durante as eleições e em manifestações “pacíficas”, “um direito básico de qualquer Estado Democrático de Direito”. Ziblatt e Levitsky desconsideram o fato de que, para a burguesia, valores éticos e morais e o respeito às regras do jogo democrático por ela mesma construídas só são levados em consideração enquanto a ela mantém o pleno controle deste jogo, como analisei em coluna anteriormente publicada (https://www.brasil247.com/blog/a-democracia-representiva-como-instrumento-de-poder-da-burguesia). O golpe de Estado contra Dilma Rousseff, as eleições de Donald Trump e de Jair Bolsonaro demonstram cabalmente que a burguesia pode mandar a democracia às favas quando percebe que seu poder está ameaçado.

As análises de Ziblatt e Levitsky, bem como a de Tocqueville e a de Kelsen não discutem os interesses classistas na formação da democracia moderna que desembocou na democracia liberal burguesa, instrumento de controle da burguesia sobre o Estado e sobre a luta de classes. O desenvolvimento deste tipo de democracia seguiu um fio único norteado pela exclusão dos grupos sociais não hegemônicas do processo decisório e administrativo. A exclusão de mulheres, de grupos étnicos e dos trabalhadores da participação nas instâncias democráticas foi reduzindo-se na razão inversa da sofisticação dos meandros e detalhes que permitiram à burguesia manter o poder em suas mãos. O parlamentarismo defendido por Kelsen permite que a minoria seja representada, mas se esta quiser exercer o poder tem que se coligar com a maioria política e a história contemporânea nos mostra que a coligação da esquerda partidária com a direita permite a esta última manter-se dando as cartas. No sistema presidencialista também existem freios à participação popular. A consequência principal, como nos mostra as últimas experiências de governos trabalhistas na Inglaterra, socialistas na França e do PT no Brasil, é os partidos de esquerda transformarem-se de tal maneira que os eleitores não conseguem mais perceber a diferença entre governo de esquerda e de direita. A esquerda pode até levar adiante algumas pequenas reformas no capitalismo que, muito possivelmente, serão revertidas pelo governo de direita que irá sucedê-la. 

Kelsen, Ziblatt e Levitsky defendem um jogo democrático limitado e bem adestrado que se desenvolve dentro parlamento. Neste contexto, manifestações políticas nas ruas são legítimas e podem até ocorrer, desde que pacíficas e ordenadas o suficiente para mudar e manter tudo como está.

As análises desses autores sustentam-se em conceitos abstratos tais como liberdade e igualdade. Liberdade para quê? Para ser pobre, explorado, viver uma vida indigna de maneira subalterna porque é preciso assegurar o direito de ir e vir do burguês, a liberdade de expressão que permite aos donos dos meios de produção difundirem como de todos princípios morais éticos e ideológicos próprios a eles, bem como o direito do capitalista explorar a mão de obra do trabalhador. Igualdade jurídica formal que assegura aos poderosos manter seu poder e subjugar os trabalhadores. 

A democracia liberal burguesa já demonstrou que aceita mudanças sociais lentas que permitam que a burguesia as assimile e as insira em suas estratégias de dominação. A história, contudo, nos mostra que as mudanças sociais só são aceleradas quando, ao contrário do que defendem Ziblatt e Levitsky, as manifestações desrespeitam a ordem burguesa.

A democracia é o governo do povo para o povo. Estes autores liberais parecem não levar em conta esta assertiva e naturalizam o exercício da dominação da minoria sobre a maioria, explicitando sua origem de classe, sua identidade de classe ou ambas. Defendem instrumentos que, em maior ou menor grau, excluem parte expressiva do povo do exercício democrático do poder ou o insere de uma maneira muito ordenada, muito controlada e limitada neste exercício de tal forma que sua influência no jogo democrático pouco contribui para a implementação de mudanças que representem uma significativa melhora nas condições de vida dos trabalhadores. 

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