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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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Quando o Terror Vira Doutrina: O Caso do Afegão, a CIA e a Nova Cruzada Migratória de Donald Trump

Crise em Washington expõe como o governo de Donald Trump transforma medo em arma política ao usar ataque isolado para justificar ofensiva migratória

Presidente dos EUA, Donald Trump (Foto: Reuters)

A tragédia ocorrida em Washington, com o ataque contra membros da Guarda Nacional, seria, em qualquer democracia madura, o ponto de partida para uma investigação rigorosa, para uma reflexão institucional séria e para a formulação de medidas de segurança ancoradas em evidência. Mas os Estados Unidos de Donald Trump não vivem mais sob esse ritmo racional. Vivem sob o que se poderia chamar de “governança pelo choque”: cada crise é um palco; cada incidente, um gatilho político; cada tragédia, uma oportunidade para reforçar narrativas pré-construídas e ampliar o alcance de políticas punitivas contra imigrantes, refugiados e quaisquer grupos que a extrema direita necessite transformar em bode expiatório.

O ataque foi violento. Dois soldados da Guarda Nacional foram atacados a tiros por um homem de origem afegã. A comoção era inevitável. Mas o que se viu, desde as primeiras horas, foi menos um esforço genuíno de entender a cadeia de eventos e mais uma corrida para instrumentalizar o fato — e transformá-lo em propaganda.

A Revelação que Incomoda: Um Ex-Colaborador da CIA

A narrativa inicial do governo Trump era simples e emocionalmente poderosa: um “terrorista afegão”, que teria entrado nos EUA graças à política “permissiva” de Joe Biden, atacou soldados americanos em pleno coração de Washington. Bastava esse enredo para justificar todo o arsenal de medidas que o trumpismo desejava reinstalar: suspensão de vistos, bloqueio de refugiados, revisão em massa de pedidos de asilo e a retomada do discurso da “América sitiada”.

Mas a linha narrativa começou a ruir quando vieram à tona duas informações fundamentais.

A primeira: o suspeito, Rahmanullah Lakanwal, não era um desconhecido infiltrado nem um resultado de descontrole das fronteiras. Ele havia sido admitido nos EUA por meio de um programa especial de evacuação criado especificamente para colaboradores das forças americanas no Afeganistão. Entrou como refugiado sob o selo oficial de “aliado”.

A segunda: mais do que isso, Lakanwal integrara as chamadas “Zero Units”, unidades paramilitares afegãs treinadas, financiadas e apoiadas diretamente pela CIA, muitas vezes responsáveis por operações secretas de contraterrorismo, incursões de noite e ações de alto risco. Esses grupos foram, por anos, os principais aliados norte-americanos na guerra no Afeganistão. Ou seja: o homem que Trump agora apresenta como símbolo do “fracasso da imigração” era, na verdade, produto direto da política militar americana.

Essa revelação é devastadora para o discurso oficial. E por isso mesmo, está sendo sistematicamente minimizada ou distorcida pelo governo.

A Lógica da Manipulação: Culpar o Elo Mais Fraco

A resposta política da Casa Branca não foi investigar falhas nos processos de triagem de colaboradores afegãos, tampouco revisar as operações secretas conduzidas pelos EUA durante duas décadas de ocupação. A resposta foi imediata e previsível: culpar a comunidade afegã como um todo.

Trump anunciou a suspensão total de vistos para afegãos, a paralisação por tempo indeterminado do reassentamento de refugiados daquele país e a revisão retroativa de milhares de solicitações de asilo já aprovadas. A justificativa? “Prevenção ao terrorismo”.

É um argumento conveniente, mas falso. Porque, se a preocupação fosse realmente a segurança nacional, a prioridade seria compreender como a CIA e o Departamento de Defesa estabeleceram redes de colaboradores sem triagem consistente, para depois trazê-los ao território americano sem mecanismos adequados de acompanhamento. Mas este tipo de pergunta ameaça a legitimidade do próprio aparato militar e de inteligência — algo que a direita norte-americana está sempre disposta a proteger.

É sempre mais fácil culpar os vulneráveis. E é exatamente isso que está em curso.

A Doutrina do Inimigo Interno

O trumpismo opera segundo uma doutrina tácita, mas clara: o inimigo ideal não é o que representa maior perigo real, mas o que gera maior retorno político. Ao longo da carreira de Trump, imigrantes se tornaram esse alvo perfeito. Eles não têm lobby, não possuem bancada, não têm como se defender institucionalmente. São, portanto, matéria-prima ideal para a construção de narrativas de medo.

O caso do afegão, com sua conexão real e comprovada com unidades apoiadas pela CIA, deveria inspirar cautela discursiva. Afinal, estamos falando de alguém que trabalhou diretamente com agências dos EUA, que foi evacuado por programas criados pelos próprios americanos e que, portanto, representa uma falha interna do sistema, não uma ameaça externa que “entrou pelas fronteiras abertas”.

Mas a conveniência política fala mais alto. A Casa Branca passou a usar o ataque como justificativa para amplificar o discurso de que os EUA estariam “sob cerco” por fluxos migratórios, especialmente de países de maioria muçulmana.

A construção desse inimigo é antiga e sua fórmula já foi testada pelo próprio Donald Trump. Em 2017, no seu primeiro grande ato presidencial, ele impôs o chamado Muslim Ban — um decreto que barrava a entrada de cidadãos de vários países de maioria muçulmana, sob o pretexto de “segurança nacional”. Na prática, tratou-se de uma medida de caráter abertamente discriminatório: famílias foram separadas em aeroportos, estudantes com vistos válidos foram deportados e refugiados previamente aprovados foram impedidos de embarcar.

A proposta original de Trump, expressa em discurso de campanha, era “banir totalmente a entrada de muçulmanos nos Estados Unidos”. O decreto apenas adaptou essa promessa a uma roupagem jurídica. O episódio, duramente criticado por juristas, diplomatas e pela própria imprensa americana, revelou a essência da doutrina trumpista: transformar grupos inteiros em ameaça coletiva para legitimar políticas de exceção. O que vemos agora com os afegãos — justamente aqueles que colaboraram com as forças americanas — é apenas a reciclagem dessa mesma lógica, reembalada sob outro rótulo.

Assim, o que temos é a reedição deformada da chamada Muslim Ban, agora sob roupagem de “segurança nacional”. Nunca é sobre o crime. É sobre o medo. Trump governa pelo medo, e cada fato é moldado à sua imagem.

O Que Diz a Imprensa Americana: Entre Fatos, Contradições e a Politização do Medo

A cobertura dos principais jornais dos Estados Unidos desmonta, peça por peça, a narrativa construída pelo governo Trump. O Washington Post revelou que o suspeito integrava as controversas “Zero Units”, forças afegãs treinadas e apoiadas pela CIA, e entrou nos EUA pelo programa de evacuação criado para colaboradores locais. A Reuters mostrou como a Casa Branca transformou o episódio em justificativa para suspender vistos e revisar em massa pedidos de asilo — antes mesmo de concluídas as investigações do FBI. Já a CNN destacou a rapidez com que Trump classificou o ataque como “terrorismo”, apesar da ausência de motivação confirmada. O New York Times enfatizou as contradições internas da administração, com assessores oferecendo versões divergentes sobre o alcance das medidas anunciadas. A AP News e o Guardian US alertam para o risco de criminalização coletiva dos refugiados afegãos, muitos dos quais haviam arriscado a vida em colaboração com as forças americanas. Em conjunto, a imprensa séria converge em um ponto central: trata-se de um caso grave, mas isolado — e sua exploração política, e não o crime em si, é o que ameaça deformar a política migratória e corroer ainda mais a democracia americana.

O Exército de Aliados Que Virou População Suspeita

O caso também coloca um holofote incômodo sobre a forma como os EUA trataram seus colaboradores afegãos. Por anos, tradutores, guias, auxiliares, jovens soldados locais, informantes e civis cooperaram com as forças norte-americanas, muitas vezes sob risco de morte. Quando Cabul caiu, em 2021, o caos da retirada – uma das piores cenas de humilhação geopolítica da história recente – forçou Washington a lançar um programa de reassentamento para salvar essas pessoas da vingança do Talibã.

Agora, muitos desses mesmos colaboradores são tratados como potenciais ameaças. Vários relatam medo, discriminação e receio de deportação. Uma espécie de ciclo trágico: o país que os utilizou como ferramentas de guerra agora os descarta quando se tornam inconvenientes na arena política interna.

A vulnerabilidade desses grupos é total. E a instrumentalização política, cruel.

A Máquina de Produzir Crises Permanentes

A guerra ao terror — ou melhor, a narrativa da guerra ao terror — sempre serviu como justificativa para ampliar poderes estatais, restringir direitos civis e transformar populações inteiras em suspeitas permanentes. É a lógica que, desde 2001, estrutura a política de segurança dos EUA e que encontrou em Trump uma versão ainda mais agressiva, mais personalizada e mais abertamente xenófoba.

O caso atual é apenas mais um capítulo desse enredo. Um homem com histórico de colaboração com a CIA comete um crime violento. O que deveria ser tratado como falha institucional vira combustível para enfraquecer o sistema de asilo, endurecer políticas migratórias e mobilizar um eleitorado radicalizado.

É assim que a máquina política se alimenta: a cada crise, amplia-se o alcance da vigilância; a cada incidente, expande-se a lógica da suspeita; a cada caso isolado, finge-se uma ameaça sistêmica.

Enquanto isso, as verdadeiras causas — de segurança, sim, mas também de política externa — ficam invisíveis.

A Responsabilidade Que Ninguém Quer Assumir

Os Estados Unidos têm uma longa história de criar monstros — ou, mais precisamente, de criar estruturas de violência que acabam por escapar ao controle. A lista é extensa: desde grupos armados treinados na América Central nos anos 1980 até milícias no Oriente Médio durante a luta contra o ISIS. O Afeganistão é talvez o exemplo mais emblemático dessa política.

As Zero Units, onde o suspeito atuou, eram forças extremamente leais aos EUA, treinadas para operações de elite, muitas vezes com pouco controle local. Há relatos de abusos, execuções sumárias e ações extrajudiciais amplamente documentadas por organizações internacionais. E, no entanto, esses grupos foram protegidos e promovidos por Washington enquanto serviam aos interesses americanos.

Hoje, quando um ex-membro comete um crime, a narrativa oficial tenta deslocar a responsabilidade para a imigração, não para a política militar que gerou tais estruturas. É confortável. É útil. E é profundamente enganoso.

O Preço do Medo como Política de Estado

Ao transformar um caso trágico em arma política, Trump empurra os EUA ainda mais para uma lógica de guerra interna permanente. É uma lógica incompatível com democracia, porque depende de inimigos permanentes para se sustentar. Depende de construir uma sociedade em que direitos civis sejam privilégios condicionais e em que comunidades inteiras sejam vistas como ameaça existencial.

O que está em jogo, portanto, vai muito além da política migratória. Trata-se de saber que tipo de país os Estados Unidos desejam ser: uma democracia aberta, capaz de absorver tragédias sem criminalizar populações inteiras, ou uma fortaleza paranoica que transforma cada estrangeiro em suspeito.

Trump deixou clara sua escolha. A pergunta é se a sociedade americana deixará que essa escolha se imponha.

Quando a Conveniência Apaga a Verdade

O ataque em Washington é real. A dor das famílias é real. A necessidade de investigação é real. Mas nada disso autoriza a manipulação do caso para justificar políticas que não têm base factual. A verdade inconveniente e que muitos tentam apagar é que o suspeito era produto direto da política americana no Afeganistão.

Não é a imigração que falhou. Foi a guerra. Foi o sistema de inteligência. Foi o ciclo vicioso que os EUA alimentaram durante décadas.

A transformação dessa tragédia isolada em doutrina migratória é injusta e perigosa. E diz muito mais sobre o projeto de poder de Donald Trump do que sobre qualquer risco real à segurança nacional.

A democracia americana sobreviveu a muitos choques. Mas nenhum tão corrosivo quanto o uso sistemático do medo para governar. E é exatamente isso que está acontecendo agora sob Trump.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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