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Fernando Lionel Quiroga

É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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Querido Papai Noel, gostaria muito de ganhar uma cesta básica

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"Se tirar o nosso, a gente tira o deles"

(Elmar Nascimento (União Brasil-BA), em tom de ameaça ao STF sobre a derrubada do orçamento secreto, em 26/10/2022) 

O capitalismo, como sistema de acumulação, aceita tão bem a metáfora da obesidade quanto da gravidez. É um animal híbrido, guloso, renitente e sobretudo disposto a tudo para livrar-se das últimas escamas do espírito pacato que ainda ecoa em velhas igrejas barrocas, bregamente enfeitadas com projetores modernos, caixas acústicas de última geração, meticulosamente dispostas para criar uma simbiose com a comunidade neopentecostal vibrante, tingida e exaustivamente vaidosa. O capitalismo, como um anjo hepático, dilacera cérebros que buscam a compreensão puxando o fio de seus traços ancestrais: a meritocracia, isto é, a fórmula unitária que despreza o coletivo. Na direção contrária, torna-se fulcral e urgente uma leitura crítica sobre os rumos do sistema econômico atual em uma perspectiva de superação, especialmente inspirada nos princípios da Economia de Francisco e Clara.

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A copa do mundo nos ensinou algo valioso, que põe em questão a falácia da meritocracia. Nas últimas edições, quando a seleção da Argentina dependia quase exclusivamente da genialidade do Messi, ainda assim a taça acabava parando em outras mãos. Mais ou menos o que ocorreu nesta copa com a França, em todo desigual do incrível Kylian Mbappé. A ideia já fora mencionada inclusive pelo rei do futebol, o Pelé, ao reconhecer que nas seleções em que o Brasil conquistou a taça, o conjunto da equipe sedimentava a vitória, e não seus méritos individuais - como ficou provado na Copa de 62, no Chile, em que o craque foi substituído por Amarildo e a seleção, liderada por Garrincha, seguiu até o coroamento do bicampeonato mundial.  Amplio o exemplo: a cobrança de pênaltis em partidas que terminam em empate é a prova final contra o mérito e é o que, justamente, comprova o espírito coletivo. Como é?, perguntar-me-ão. A cobrança de pênaltis é a última forma de exposição da coletividade, agora livre do envolvimento daquele que desequilibra. É o craque dividido pelos outros 10 jogadores. É um movimento de espírito coletivo, não de técnica. A equipe de maior coletividade, portanto aquela menos preocupada na atomização do gênio, tenderá a ser a vencedora. Foi assim com a Argentina contra a Holanda. Foi assim com a Argentina contra a França. E foi assim com a Croácia contra o Brasil. O pênalti - justamente o momento em que os jogadores se expõem diante de milhares de testemunhas oculares, dependendo apenas de si mesmos - se tratado como mérito individual, não passa de uma falácia. É justamente a cobrança individualizada do chute o que põe a perder a ideia do mérito. É que, agora mais do que nunca, o resultado dependerá de um somatório de forças, que se inicia com o melhor de 5, podendo ser ampliado, caso seja necessário. É preciso, na aparência de que a meritocracia existe, calçar as chuteiras com o que de maior há no coletivo da equipe. A partir disso, é até mais fácil entender porque o Brasil despediu-se mais cedo da copa. 

A coletividade que faltou à nossa seleção, nesta edição, sobrou para a seleção Argentina. E é sempre o coletivo que vence a copa, jamais o indivíduo, por mais méritos que tenha.

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Mas, então, o que isso tudo tem a ver com o título deste artigo? 

É que a pobreza, ao atingir um contingente expressivo da população, atinge a todo o país. Trancafiar-se em um condomínio cercado com um ostensivo e elevado muro disfarçado com plantas ornamentais e, no conforto do lar, celebrar a época à frente de uma árvore natalina farta, obesa de luzes, festões e bolas puxando a bege, em uma aconchegante sala repleta de vozes vibrantes e felizes, invadida com o cheiro de chocolate vindo da cozinha; nada tem de pecado, é verdade. Afinal, que mal há nisso? Essa é, afinal, a ideia-mãe do espírito natalino. À meia noite do dia 24 - ou um pouco antes, em tempos de ansiedade - o Papai Noel entregará caixas coloridas a todos os integrantes da família. Trocarão abraços, beijos, palavras de paz; crianças se atropelarão pelos corredores, encantados com seus novos brinquedos de plástico duro e luzes, tablets e bonecas reborn, aquelas hiper realistas, com finíssimas rugas e os olhos esbugalhados, marmóreos, olhando fixamente para o teto.

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Como um boneco de pau à espera dos encantos de uma fada, ou como se buscasse correspondência com seu semelhante de carne e ossos, assim permanecerá nos braços da menina-mãe que acaba de recebê-lo.

Justamente, em outro lugar onde o Papai Noel não foi, podemos ver o bebê cujo sangue esfria a cada segundo, também de olhos petrificados, fixos sob o teto pálido, pronto para retornar para o universo infinito, ali onde não chega o cheiro do chocolate e o ar é inóspito à caravana das renas. Ali, em um dos milhões de lares da pobreza e da extrema pobreza, a “noite feliz” será acobertada pela neblina do crack, do corote e do resto de uma marmita fria adquirida em um semáforo ao fim da tarde. No monoambiente de piso queimado e um amontoado de camas circundando as paredes de tijolos baianos, as outras crianças brincarão de lutinha após ouvirem sua mãe ecoar “não tem”, “não tem, “não tem”, justificando a falta de dar o que comer, como um ritmo que se funde aos seus frágeis tendões, cordas finíssimas desse insuportável instrumento musical. Também na “noite feliz” o bebê deverá morrer a qualquer minuto para cumprir seu destino de pertencer à exorbitante estatística da ONU, cujos números gritam a morte de uma criança menor de 10 anos a cada cinco segundos, o equivalente a 17.000 crianças por dia, em todo o globo.

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Há ainda alguém que possa dizer que, diante desse quadro, a meritocracia tenha ainda algum sentido?  Ora, como vimos no exemplo futebolístico, mesmo ali o mérito do craque se desmancha na ausência do espírito coletivo. Sem coletividade o mérito se transforma em uma falácia. E isso não implica negar a existência e a importância de contarmos com o gênio daqueles que possuem certas habilidades especiais. Mas o de reconhecer que, sem que exista um pano de fundo em que esta possa se assentar - a coletividade - tal habilidade torna-se, quando muito, mera expressão de exibicionismo.

Se a pobreza e a miséria do outro - expressas pela cifra astronômica de 10 milhões de crianças - não nos atinge, quando logo nos conformamos com o adágio de que “não vamos mudar o mundo” e nos flagramos diante de uma sociedade doente, resta-nos no mínimo um exercício de profunda reflexão. O que aprendemos é que a fome não se restringe a um fenômeno individual, quanto menos natural. O problema da fome não é daquele que a experimenta, mas sobretudo daquele que, mesmo sem culpa, alimenta-se por dois ou três. O mito da individualidade, sintetizada no capitalismo pela figura do mérito, divide-se, no campo de futebol, pela divisão da imagem do craque à toda equipe. Na sociedade atual, o indivíduo, dominado pela hipérbole neoliberal de que é preciso “olhar a si mesmo”, “cuidar de si”, contaminado pelo encanto do espelho, do smartphone e das redes sociais - maiores instrumentos de uma empatia de si -  deve, se quiser suplantar o aumento exponencial da miséria, se insurgir contra a meritocracia do espelho realizando uma curva em direção ao outro. Deve promover a real empatia, que consiste na doação de si para o outro, aos moldes de S. Francisco. Não há e não pode haver Natal quando a própria natalidade de milhares de crianças é interrompida diariamente diante da fome promovida pela ambição de poucos.

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