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Fernando Lionel Quiroga

É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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Saci, caldo de feijão e batuque: o que faltou para o Brasil trazer o hexa

Perdemos o nosso futebol ao converter nossos jovens jogadores em commodities do mercado futebolístico

Vinícius Jr. dança com colegas da seleção brasileira para comemora gol na goleada de 4 x 1 sobre a Coreia do Sul05/12/2022 (Foto: REUTERS/Carl Recine)
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Dizem, no futebol, que escrever depois dos resultados é fácil, difícil é fazer previsões.  Com a derrota do Brasil para a Croácia e após o amargo sabor da desclassificação, vale a pena, ainda assim, aproveitar a ocasião para tecer alguns comentários. 

 A pergunta comum a todos é: o que aconteceu com a seleção brasileira? O que é capaz de explicar o jejum de 20 anos sem um novo título mundial? 

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O jogo contra a Coréia encheu nossos olhos, fez-nos sonhar com o hexa. Muitos meninos já começavam a descolorir seus cabelos. Passamos a discutir sobre as dancinhas, apontando para o tom racista de quem as criticava. E foi só. 

Mas, então, o que houve? Ou melhor, o que há com a seleção brasileira?

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Poderíamos também perguntar: quem conhece o estilo dos nossos jogadores, senão assistindo-os na própria copa? 

Aqui, cabem algumas observações.

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O futebol é um esporte lendário. Observe-se: as lendas são transmissões orais presentes em todos os países. Tem a ver com a noção identitária de uma nação, seja ela mais ou menos complexa.  Não é difícil a associação do futebol ao saci-pererê, ícone do folclore brasileiro. Historicamente, os jogadores da seleção brasileira jogam com o saci. O drible nos passa essa ideia. Ninguém sabe driblar como o jogador  brasileiro. Não existiriam os rodopios em torvelinho de Garrincha ao entorno do zagueiro se não existisse o saci em seu corpo: - é o espírito de algo tipicamente brasileiro que se apossa do corpo do driblador. O drible sem a necessidade de embaralhar a bola entre os pés - a bola fica intacta, enquanto o corpo que ginga embaralha os olhos do zagueiro - é a epifania de um saci em campo.  

E as comemorações, o que são, finalmente? Na lógica da razão instrumental, em que todo o tempo é milimetricamente calculado em variáveis que vão da densidade muscular à técnica do cabeceio, o hiato que se sucede do gol até o recomeço da partida pela equipe adversária é um vazio que admite uma liberdade momentânea, um espaço formidável para a criação de um símbolo. No caso brasileiro, trata-se de uma fração de liberdade, o gesto desenha-se, não poucas vezes, no estado pré-consciente. Mais, do pouco espaço que resta da pressão exercida pelas regras da FIFA, a comemoração termina por ser, inevitavelmente, um espaço político.

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Tomemos alguns exemplos.

Sócrates comemorava seus gols como os Panteras Negras norte-americanos, braço erguido e cabeça baixa. Um gesto político em essência: resistência e luta. Pelé saltava desferindo um soco no ar como quebrando a linha tênue entre o campo e as arquibancadas: a oferta e a partilha do sacrifício. Também a reação de alívio de quem suporta o peso de milhões de olhares afoitos, insensíveis aos seus erros. Por isso, é o soco na cara do “patrão”, a resposta ao “senhor” que utiliza-se do seu corpo para a sua diversão. 

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As dancinhas atuais são também reações políticas. Trata-se da reação de quem teve a infância e adolescência roubadas, a cultura e os valores nacionais negados, a alma da cultura futebolística brasileira esvaziada. Dançar em breves vinte segundos é uma forma de rever-se com este Brasil perdido; é o momento em que se pode sonhar diante da torcida com o cheiro de terrão molhado e da batucada das favelas.  

Sentado no topo de um bambuzal, o saci fuma cachimbo e assiste o futebol dos terrenos baldios e campos de várzea.  O mistério de sua fumaça mescla-se à atmosfera das partidas, que recebe, de outras partes, o vapor do feijão e o ritmo da batucada. E, assim, nasce o nosso futebol.

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Sem estes elementos será difícil voltar a ver o moleque ansioso para driblar e marcar gols calçando chuteiras e vestindo o uniforme da seleção canarinho para brilhar nos estádios do mundo. Ao vendermos precocemente nossos craques, perdemos também os modelos de inspiração às novas gerações. O futebol não é genético; como prática social, depende de mecanismos de reprodução. Ao invés de vender a arte do futebol e o seu astronômico valor incorporado, optamos por vender corpos - cálculo perverso,  porque aproveita-se da esperança coletiva no milagre individual como única alternativa para mudar a trajetória de vida. Perdemos o nosso futebol ao converter nossos jovens jogadores em commodities do mercado futebolístico. 

A polarização nefasta que se instalou no Brasil nos últimos anos tem afastado, ainda mais, aquilo que é a pura alma do nosso futebol: a intensificação do racismo, o ataque às religiões de matriz africanas e, mesmo que dissimuladamente, porque, afinal, aqui é o Brasil, o próprio futebol, como a paranoia anticomunista que a extrema-direita americana - que os bolsogolpistas idolatram - tem defendido recentemente.

Sim, o Bolsonarismo é o último capítulo de nossa decadência futebolística. E se o Neymar não pode mais homenagear o capitão - o mito, como eles gostam de dizer - pode, então, juntar-se a ele para chorar as derrotas.

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