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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Sambiquira, mas pode chamar de Uropígio

A fome torturava famílias de um bairro paulistano. Aí, o Edson teve uma ideia

Pedaços de carne em açougue no Rio de Janeiro (Foto: Ricardo Moraes / Reuters)

Olho em volta, de cima pra baixo, mas não encontro resposta. O jeito é perguntar.

- O que é Sambiquira?

O balconista do boteco que exibe o quitute numa vitrine embaçada pelo calor me olha como se eu perguntasse se depois do dia vem a noite.

- Sambiquira é bunda de galinha, sabia não?

Meu pai, que chamava bunda de galinha de bunda de galinha, começava por essa parte carnuda o ataque avassalador à galinha assada que minha mãe preparava no domingo. Eu e meus irmãos, sempre famintos e atrasados, liquidávamos a segunda parte do serviço. Os miúdos - já trataremos deles com o merecido destaque - ela reservava para a canja da noite.

Meio século depois, a crise climática se agrava e alerta que a mesa farta será cada vez mais cara. Um em cada dez habitantes do nosso planeta dorme de barriga vazia.

Tão triste quanto a fome é o desperdício. O que vai pro lixo nos países ricos acabaria com a falta de comida na África e com o vexame da desnutrição infantil.

Aqui no Brasil, os miúdos da galinha eram desvalorizados, hoje são protagonistas.

Meu vizinho, um cozinheiro libanês, prepara um dos melhores sanduíches do bairro com fígado de frango.

Encoberto por um nevoeiro engordurado e de cheiro forte, Heraldo, maranhense de Colinas, arruma suas delícias na churrasqueira, vizinha à estação de trem. O espetinho de coração de frango é o primeiro a acabar.

Moela é a estrela de um bar chamado de, adivinha, Moela. São várias receitas com o miúdo. Graúda, a fila de espera só faz crescer.

E o Sambiquira, que citei no início e que os cientistas chamam de Uropígio? Bem temperado e frito, é servido como tira-gosto em bares de comida mineira. Passa fácil, fácil por frango à passarinho. Da família dos galos e pintos, só as penas sobrevivem. Por enquanto.

Todos, ricos ou pobres, já ficamos com fome, mesmo que por pouco tempo. Pois era nesse momento, de estômagos ansiosos, que o Edson batia uma panela velha pelas ruas do Ermelino Matarazzo. Um homem de canelas roliças, de humor fácil e reconhecido como pedreiro habilidoso. Entre encher laje e assentar piso, Edson organizava uma vaquinha entre os vizinhos. Gente muito humilde colaborava com algumas moedas e, às vezes, só com o olhar tristonho e faminto.

Edson criou, sem saber, um plano de segurança alimentar muito antes do Fome Zero ou do Bolsa Família. Era assim: da feira pegava sobras de legumes e verduras; também cabeças de peixe. Completava a ronda na barraca do frango, a recolher pescoço, pés e, com sorte, Sambiquiras.   

Depois, Edson chegava ao açougue com os trocados que juntara na vizinhança, entre dez e quinze reais. Dinheiro curto para comprar qualquer tipo de carne, mas uma gorjeta atraente para quem estava do outro lado da vitrine.

O açougueiro retribuía dando os chamados retalhos: a gordura do boi retirada do coxão mole ou contra filé e que iria para o lixo. Tudo era cortado e recortado. E o mais apetitoso: vários pedaços com alguns nacos de carne.

Na mirrada casinha, a mulher Rita e os 6 filhos de Edson aguardavam. Tinham fome e esperança.

Se o torresmo tradicional vem da barriga do porco, o de Edson e Rita era filho da vaca. A mulher fritava cebola e alho. Aí o presente do açougueiro fazia estardalhaço em contato com a banha fervente. Começava a dourar o torresmo mais cheiroso do bairro. Arroz, feijão e um ou outro alimento conquistado na feira completavam o almoço de 20, 30 pessoas, a maioria crianças.

À noite, se reuniam para o sopão preparado com a xepa da xepa. Comiam todos, juntos e felizes. Inclusive quem não tinha participado da vaquinha.

De quantos Edsons o mundo precisa para vencer a fome?

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.