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Gustavo Tapioca

Jornalista formado pela Universidade Federal da Bahia e MA pela Universidade de Wisconsin-Madison. Ex-diretor de redação do Jornal da Bahia, foi assessor de Comunicação Social da Telebrás, consultor em Comunicação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do (IICA/OEA). Autor de "Meninos do Rio Vermelho", publicado pela Fundação Casa de Jorge Amado.

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“Se ele fosse narcoterrorista, por que estaríamos vivendo na miséria e não numa mansão?”

É chegada a hora de voltar ao tema do massacre trumpista no mar do Caribe

Embarcação da guarda costeira da Marinha venezuelana opera na costa do Caribe - 11/09/2025 (Foto: REUTERS/Juan Carlos Hernandez)

O escândalo de corrupção do Master, BRB, Vocaro, Ibaneis, Castro, Centrão, Lira, Ciro, Rueda, Alcolumbre — tudo junto e misturado —, e as tornozeleiras violadas de Bolsonaro ofuscaram, por um momento, o massacre trumpista no mar do Caribe. É chegada a hora de voltar ao tema. Depoimentos de familiares dos pescadores mortos por execuções extrajudiciais começam a surgir. São amigos e parentes, pessoas simples, que não conseguem entender por que estão sendo dizimados pela maior potência bélica do mundo.

Da mesma forma que transformou camponeses vietnamitas em “comunistas-alvo” e civis iraquianos em “armas químicas ambulantes”, o império agora rotula pescadores pobres do Caribe como “narcoterroristas”, e os executa sem tribunal, sem testemunha, sem perícia, sem corpos devolvidos às famílias — estraçalhados pelos mísseis mortais lançados com autorização do presidente dos EUA e da máquina militar que ele comanda.

Nos últimos dias, novos relatos internacionais reforçam a gravidade do cenário. Segundo o The Guardian, ataques recentes ocorreram também no Pacífico Oriental, revelando que a campanha militar dos EUA deixou de ser apenas caribenha e se tornou hemisférica, atingindo embarcações longe de qualquer rota tradicional do narcotráfico. A AP News e a CBS News confirmam que, desde agosto, já foram registrados ao menos 20 ataques, tanto no Caribe quanto no Pacífico, consolidando a transformação de toda a região em um “teatro de operações” unilateral dos EUA. 

Os ataques já mataram mais de 80 pessoas

Segundo investigação da Carta Capital, os bombardeios norte-americanos já deixaram ao menos 70 pescadores mortos, número considerado mínimo por redes de comunidades costeiras de Trinidad, Venezuela e Colômbia. A ONU contabiliza 64 mortos ou desaparecidos em 15 ataques documentados. Algumas fontes alertam que o número real já ultrapassa 80 vítimas — pescadores pobres, invisíveis, descartáveis aos olhos do império. O The Guardian foi categórico: “Os ataques já mataram mais de 80 pessoas, de acordo com números do Pentágono.” Nenhuma prova de narcotráfico foi apresentada. Nenhuma apreensão. Nenhuma evidência material. Nada.

Especialistas da ONU afirmaram em nota oficial que os EUA estão cometendo “execuções extrajudiciais em águas internacionais”. O Alto Comissário de Direitos Humanos, Volker Türk, classificou a conduta como “inaceitável, ilegal e incompatível com qualquer interpretação válida do direito internacional”.
O governo Trump, por sua vez, tenta enquadrar os ataques como parte de um “conflito armado contra o narcoterrorismo”, mas juristas internacionais — citados pela Reuters, PBS e Washington Post — rejeitam esse argumento, afirmando que não existe conflito armado declarado, não há proporcionalidade e não há transparência.

A supermáquina de guerra contra a Venezuela

Reportagem do Fantástico deste domingo, 23 de novembro, revelou a presença do porta-aviões USS Gerald R. Ford, destroieres, helicópteros de ataque e drones avançados operando no arco Venezuela – Colômbia – Trinidad. A Globo definiu o conjunto como: “A supermáquina de guerra americana que ameaça a Venezuela.” O programa registrou também que pescadores colombianos deixaram de sair ao mar à noite, mudaram rotas centenárias e vivem aterrorizados com a possibilidade de terem seus barcos destruídos “por engano” — exatamente como ocorreu com dezenas de embarcações artesanais venezuelanas e trinitenses.

Luto, choro e revolta

As bombas do governo Donald Trump no Caribe não atingiram “narcoterroristas”. Atingiram famílias, comunidades de pesca e trabalhadores pobres, invisíveis para a retórica de Washington, mas plenamente reconhecidos por quem convivia com eles. Os depoimentos reunidos pela AP News, pelo The Guardian, New York Times e San Juan Daily Star revelam o que a narrativa militar tenta esconder: a guerra que Trump inventou está matando pais de família, adolescentes que sustentavam casas, e pescadores que alimentavam suas famílias com o produto do que conseguiam pescar no mar — agora proibido por Trump — do Caribe.

Reportagens da AP e do Washington Post registram que, além dos mortos, há comunidades inteiras sem renda, pescadores que perderam seus barcos, famílias que agora dependem de doações, e vilas costeiras que viram desaparecer sua principal atividade econômica. O medo é tão grande que até pescadores que nunca foram atacados já têm deixado de ir ao mar, produzindo um colapso local comparável ao de zonas de guerra. Em Trinidad e Tobago, na vila de Las Cuevas, a prima de Chad Joseph, pescador morto pelos misseis de Trump, desconstrói o rótulo norte-americano:

“Todo mundo tem direito ao devido processo, e isso não foi dado. Não parece mais que estamos sob o nosso governo quando se trata dessas águas.” (The Guardian, 17/10/2025)

O primo, conhecido como “Charp”, vai direto ao ponto que a diplomacia tenta ocultar: “Quero saber por que Donald Trump está matando gente pobre desse jeito. Ele está atrás das riquezas — e matando os filhos dos pobres.” A avó, Christine Clement, tenta controlar a pressão alta enquanto convive com a ausência total de investigação oficial. Na Colômbia, a dor tem nome e idade. Cheila, de 14 anos, filha do pescador Alejandro Carranza, morto no ataque de 15 de setembro, lembra que o pai saíra apenas para “uma pescaria rápida”. No dia seguinte, o barco foi destruído pelas forças dos EUA. “Nunca pensei que perderia meu pai desse jeito”, diz ela. A companheira do pescador, Katerine Hernández, desmonta a fantasia de Washington:

“Se ele fosse narcoterrorista, por que estaríamos vivendo na miséria e não numa mansão?”

Hoje, ela e os filhos sobrevivem espremidos em um único cômodo sustentado por parentes igualmente pobres. (New York Times / San Juan Daily Star, 22/10/2025). Na Venezuela, a tragédia é ainda mais silenciosa. A investigação da AP News mostra mães e filhos que só souberam das mortes por vídeos anônimos de explosões. Nenhuma autoridade confirmou oficialmente nada. Familiares de pescadores de Güiria, em Sucre, Venezuela, perguntam: “por que os EUA não interceptaram as embarcações — por que preferiram explodir?” Um parente resume o desespero: “Quero uma resposta, mas a quem posso perguntar?" (AP News, 04/11/2025). O caso do pescador Robert Sánchez, pai de quatro crianças, é devastador. Após um vídeo mostrar um barco pulverizado por um míssil, os parentes esperaram a mãe tomar remédio de pressão antes de confirmar o que temiam: ele estava a bordo. O filho de Robert, cinco anos, repetia:

“E se ele nadou e está esperando ajuda no mar?” 

Os relatos convergem em três pontos: as vítimas eram trabalhadores pobres, não terroristas; foram mortas sem investigação, sem rendição e sem julgamento; as famílias ficaram sem corpo, sem explicação e sem apoio. Esta é a parte da história que o mundo parece não ver.

O Departamento da Guerra e o laboratório caribenho

Com a recriação do Departamento da Guerra por Donald Trump, o Caribe se tornou laboratório de uma doutrina imperial agressiva, denunciada pelo The Guardian como “zona cinzenta de guerra assimétrica”. É o pior tipo de guerra: aquela que mata sem declarar, opera sem investigar e decide sem responder. Essa ofensiva viola a Convenção de Montego Bay (direito do mar), a Carta das Nações Unidas, acordos de soberania marítima, todas as regras de proporcionalidade e de uso da força. Mas Trump, convertido por si próprio em imperador hemisférico, chancela tudo com a palavra mágica: “narcoterrorismo”.

Segundo a Reuters, juristas internacionais afirmam que os EUA violam a Convenção de Montego Bay, a Carta da ONU, o princípio da proporcionalidade, e o dever de exibir evidências básicas. Não há zona cinzenta: os ataques são ilegais, proibidos, clandestinos, ilícitos, inconstitucionais. E ponto.

É o petróleo, idiota!

O que está acontecendo na costa da Venezuela não é uma política pública de combate ao narcotráfico — é uma guerra informal, não declarada, unilateral, concebida para produzir espetáculo e consolidar poder. E, como em todas as guerras assimétricas, quem morre primeiro é o pobre.

A hostilidade de Trump contra a Venezuela, amplificada por seu interesse explícito no petróleo do país, criou um ambiente em que qualquer embarcação pode ser rotulada como “ameaça” e destruída sem investigação. A narrativa do narcoterrorismo tornou-se uma licença para matar.

Tudo isso sob o comando de um narcisista beligerante, movido por delírio geopolítico e ambição hemisférica, que transformou o Caribe no novo Vietnã — um Vietnã sem floresta e sem napalm, sem helicóptero, sem foto histórica. Um Vietnã afogado por mísseis e bombas. Um Vietnã do qual nenhum corpo retorna. Apenas resquícios de pescadores estraçalhados flutuando no mar do Caribe, vítimas das bombas certeiras da maior potência militar do planeta, hoje comandada pelo Imperador Donald Trump.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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