Seul e o Fim da Ordem Mundial
Todos os olhos estão voltados para Seul e Gyeongju, onde ocorrerá a Cúpula da APEC
A Ásia como palco da tensão global
Logo após a reunião em Kuala Lumpur na Malásia da Cúpula da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN, na sigla em inglês), todos os olhos estarão voltados para Seul e Gyeongju, onde ocorrerá a Cúpula da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC 2025 Korea).
A Coreia do Sul será a anfitriã da APEC em 2025, pela terceira vez (as anteriores foram em 1991 e 2005). A reunião principal — o Encontro de Líderes Econômicos da APEC (APEC Economic Leaders’ Meeting) — ocorrerá em Gyeongju, cidade histórica próxima a Seul, entre 31 de outubro e 1º de novembro de 2025.
Trata-se de um dos encontros mais importantes do ano, reunindo 21 nações que concentram cerca de 60 % do PIB mundial, entre elas Estados Unidos, China, Japão, Coreia do Sul, Rússia, Austrália, México, Chile e Peru. Criada em 1989 para promover o livre-comércio e a integração econômica, a APEC se tornou um fórum de negociação e influência diplomática que, mais do que nunca, reflete as mudanças no centro de gravidade da economia global — hoje firmemente deslocado para o Pacífico.
A APEC não é um bloco como a União Europeia — não tem tratados obrigatórios —, mas funciona como um fórum estratégico, onde líderes discutem tarifas, cadeias de suprimento, tecnologia, energia e segurança econômica.
A edição 2025, com o lema “Conectando o Futuro: Inovação, Sustentabilidade e Inclusão” e o que seria uma reunião de rotina, ganhou contornos de grande apreensão: Donald Trump e Xi Jinping voltarão a se encontrar pela primeira vez desde 2019.
Ambos chegam a Seul em busca de algum gesto de distensão depois de meses de escalada tarifária e tensão militar. Trump impôs novas tarifas de até 60 % sobre produtos chineses; Pequim reagiu com restrições a minerais críticos e semicondutores. As cadeias globais de suprimentos estão novamente sob estresse e o mundo observa com apreensão se a cúpula poderá conter o ímpeto destrutivo da segunda “guerra comercial” em menos de uma década.
A Coreia do Sul, anfitriã, tenta equilibrar-se entre os dois gigantes, consciente de que qualquer desdobramento em Seul afetará diretamente suas exportações e seu papel estratégico no Indo-Pacífico. A atmosfera política é de suspense diplomático: será que o reencontro entre Trump e Xi poderá restaurar algum grau de previsibilidade ao sistema global?
O artigo publicado em 22 de outubro no The New York Times (NYT), assinado por Rebecca Lissner e Mira Rapp-Hooper, responde com contundência: não.
A desordem mundial como herança de Trump
No texto intitulado “Trump, Xi and the End of the World Order” (NYT, 22 de outubro de 2025), as autoras afirmam que, mesmo que haja um breve cessar-fogo tarifário, a confiança na liderança americana não será restaurada. Ao aplicar tarifas punitivas e imprevisíveis, argumentam, Trump subverteu a ordem econômica internacional baseada em regras que os Estados Unidos lideraram por 80 anos e que lhes assegurou uma hegemonia econômica e política.
Trata-se, segundo elas, de uma “campanha de incineração sistêmica”: o presidente norte-americano destrói deliberadamente o sistema que seu próprio país construiu após 1945, aquele que ancorou instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC).
O artigo situa o ponto de ruptura: Washington renuncia ao papel de fiador da estabilidade global, substituindo-o por uma política de coerção e de interesses imediatos. A fala do secretário de Estado, Marco Rubio — “a ordem do pós-guerra virou uma arma contra nós” — é apresentada como símbolo dessa inversão histórica.
Trump ameaça militarmente a Venezuela, mas é leniente com a Rússia; corteja líderes autocráticos como Putin, Xi e Kim Jong-un, enquanto desdenha dos aliados democráticos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). “Nunca antes”, escrevem Lissner e Rapp-Hooper, “uma superpotência desmantelou intencionalmente o sistema criado para sustentar sua própria liderança.”
O resultado é o que as autoras chamam de “interregno caótico” — um hiato histórico entre o colapso da velha ordem e a incapacidade de erguer uma nova. A ONU e a OMC sobrevivem, mas esvaziadas; o comércio global fragmenta-se; e o nacionalismo econômico substitui o multilateralismo.
O ano de 2025, marcado por conflitos simultâneos no Sul e Sudeste Asiático, no Oriente Médio e na África, confirma essa previsão: a desordem já não é uma hipótese — é o estado natural do sistema internacional.
A era da incerteza e o declínio americano
A APEC 2025 será, portanto, o espelho desse novo mundo. Os Estados Unidos continuam poderosos, mas voláteis e imprevisíveis; a China, fortalecida economicamente, ainda carece de um projeto global de governança. Entre ambos, países intermediários — como a própria Coreia do Sul, a Indonésia, o Vietnã e até o Brasil — tentam redefinir seu espaço num cenário sem hegemonia estável.
Lissner e Rapp-Hooper descrevem esse momento como “um ato de suicídio de uma superpotência”: os EUA corroem os alicerces de sua influência ao preferirem o isolamento competitivo à cooperação.
A consequência é dupla: o vácuo de liderança e a multiplicação de conflitos. De pandemias a mudanças climáticas, de semicondutores a energia limpa, os temas globais perdem instância de coordenação. O que resta é a disputa bruta por poder e recursos — minerais, rotas marítimas, dados, inteligência artificial.
Entre o colapso e a reinvenção
As autoras do The New York Times (NYT) ainda enxergam uma saída: a construção de uma nova ordem cooperativa entre as democracias. Combinando capacidade tecnológica, capital e valores políticos, Europa e Ásia poderiam reconstruir parte do espírito multilateral que se perde em Washington.
Mas o desafio é imenso: orçamentos militares crescentes, estagnação econômica e crises sociais internas limitam o apetite por liderança global. Sem um pacto de confiança renovado, a desordem tende a se consolidar como norma.
Para a Coreia do Sul — e para o mundo —, a reunião de Seul não é apenas mais uma cúpula econômica. É um rito de passagem para a era pós-hegemônica, onde as potências oscilam entre o confronto e a cooperação.
A história pode registrar este encontro como o momento em que o Pacífico assumiu o centro do sistema internacional — ou como o instante em que o mundo constatou que nenhum império é eterno, nem mesmo o americano.
Referência: Rebecca Lissner & Mira Rapp-Hooper, “Trump, Xi and the End of the World Order”, The New York Times, 22 de outubro de 2025.
Rebecca Lissner é pesquisadora sênior em política externa dos EUA, ex-assessora adjunta de segurança nacional de Kamala Harris. Mira Rapp-Hooper é ex-diretora para o Leste Asiático no Conselho de Segurança Nacional, hoje no Asia Group e Brookings. São coautoras do livro An Open World: How America Can Win the Contest for the 21st Century Order.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




