Só a esquerda pode vencer Bolsonaro
Antes de tudo, devemos nos perguntar: como é possível, à luz das 100.000 mortes provocadas pela Covid-19, que 38% do eleitorado brasileiro esteja disposto a conceder a Jair Bolsonaro um segundo mandato?

Qualquer pessoa dotada de mínimo bom senso ficou atordoada com os resultados divulgados por uma recente pesquisa eleitoral.
Os dados mostram Jair Bolsonaro com 38% das intenções de voto, seguido por Fernando Haddad, com 14%. A pesquisa não incluiu a candidatura do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva[1].
Sim, é muito cedo para se falar em eleição presidencial. No entanto, não deveríamos cometer o erro de subestimar esses números. Eles dizem algo sobre o cenário político atual e o que dizem não é nada animador.
Antes de tudo, devemos nos perguntar: como é possível, à luz das 100.000 mortes provocadas pela Covid-19, que 38% do eleitorado brasileiro esteja disposto a conceder a Jair Bolsonaro um segundo mandato?
Múltiplas razões explicam o fenômeno. Detenho-me em apenas duas, que, entretanto, têm natureza estrutural.
A sociedade brasileira está acostumada com o genocídio. Fomos forjados como nação a partir do extermínio de grandes contingentes de indivíduos, a começar pela eliminação contumaz das populações indígenas originárias. Esse mecanismo sinistro foi utilizado para o controle da população de origem africana por intermédio do regime de escravidão. O corpo de homens e mulheres negras foi transformado em mercadoria e seu uso submetido ao direito absoluto de propriedade. Um mecanismo clássico da assim chamada acumulação primitiva.
A proclamação da República e o advento do Estado Social não eliminaram o problema. Pelo contrário, forjaram novos desenhos institucionais de gestão da violência estatal organizada. A Constituição de 1988 bem que tentou, mas os arranjos de poder que recebera da ditadura militar permaneceram em certa medida intocados.
A violência policial estrutural contra as periferias; o extermínio constante de grandes contingentes de jovens negros e pobres é o resultado mais ou menos direto destas profundas raízes do Brasil. A morte é elemento constitutivo de nossa sociedade. Está naturalizada e incorporada em nossos ritos de convivência social. O “E daí?” é a representação simbólica mais macabra e realista desta situação.
Há uma segunda razão, também estrutural, mas sujeita à modificação. Desde 2013 os meios de comunicação tradicionais têm submetido a esquerda brasileira a um processo contínuo de criminalização. Sob as vestes da “luta contra a corrupção” escondeu-se um movimento político bem organizado e planejado de exclusão das forças progressistas da disputa eleitoral.
A operação Lava-Jato não passou de fantoche de forças políticas que se movimentaram nos subterrâneos. Incapazes de vencer no voto, apelaram para estratégias claras de interrupção de mandatos progressistas. Não é preciso conhecer muito da história brasileira. Basta ler sobre o segundo governo de Getúlio Vargas e sobre o período de João Goulart para ter certeza de que a estratégia é antiga. O que impressiona é perceber que a esquerda não se preparou como deveria.
O resultado trágico desta imbricação de forças políticas reacionárias, poder judiciário e mídia tradicional foi a quase eliminação das forças progressistas como opção político-eleitoral viável. Com exceção do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, nenhum outro nome parece ameaçar a candidatura do atual presidente da República.
Isso mostra duas coisas.
Primeiro, a estratégia do chamado “gabinete do ódio” está funcionando. Jair Bolsonaro tem, de fato, conseguido aglutinar em torno de si o campo conservador do eleitorado brasileiro. A figura de Sério Moro está derretendo e nem mesmo o patrocínio do jornalismo tradicional tem sido capaz de impedir sua implosão. João Doria não tem tido sucesso em capitalizar o fracasso retumbante da política de combate ao coronavírus. Ambos seguem com 10% e 4% das intenções de voto, respectivamente.
Em segundo lugar, o campo progressista não consegue se articular. E aqui o que é mais dramático: é pouco provável que a esquerda brasileira possa oferecer uma candidatura vitoriosa sem o apoio de parte dos atores que concorreram para o golpe de Estado de 2016.
Sim, por mais desanimador que possa parecer, a construção de um nome capaz de vencer Jair Bolsonaro depende da desconstrução do discurso judicial e midiático que tem prevalecido desde 2013. E essa desconstrução tem que ser feita pelos mesmos atores que criaram o enredo. Aqueles que abriram a caixa de Pandora agora têm de fechá-la.
O campo progressista, com seus 30% de votos assegurados, não é capaz de romper sozinho o bloqueio imposto pelas forças conservadoras. Os mecanismos de comunicação por redes sociais têm sido efetivos na manutenção do discurso reacionário e a esquerda ainda não conseguiu situar-se adequadamente nesse campo. Sem a ajuda da grande imprensa, as perspectivas não são otimistas.
A esta altura, o leitor e a leitora já devem estar se perguntando: pois bem, o que levaria o poder judiciário e a imprensa tradicional a reabilitarem o campo progressista? A resposta é simples: os próprios interesses mesquinhos de sempre.
Não se deve apostar no bom senso da elite brasileira. A cada quarenta anos ela prova ser incapaz de enxergar um palmo à frente do nariz. O golpismo está em seu DNA.
No entanto, há um dado relevante: Jair Bolsonaro é incontrolável. É da natureza do fascismo a vontade de poder. A ascensão totalitária submete a economia à política e os agentes econômicos ao poder de Estado sem quaisquer limites. Isso não é discurso acadêmico, a história europeia dá-nos provas contundentes disso.
Além do mais, a elite já provou do veneno. Sempre houve ditaduras no Brasil e elas sempre acabaram. Por que razão? Porque as classes dirigentes são cultas, educadas e têm apreço pela democracia? Claro que não. Porque foram alijadas das decisões políticas, embora tenham mantido os privilégios econômicos.
Sendo mais explícito: algumas redes de televisão sabem que, se Bolsonaro não for detido, correm o sério risco de serem destruídas. Alguns ministros do STF sabem que, se o presidente da República não for contido, seus poderes serão seriamente limitados. É uma questão de sobrevivência.
Assim, o feitiço se volta contra o feiticeiro. Se a direita está hegemonizada por Bolsonaro, apenas uma força política é capaz de vencê-lo: a esquerda. Mais precisamente, um nome: Luís Inácio Lula da Silva.
Eis o ponto: não há opção para as elites. Ou elas reabilitam o ex-presidente, devolvendo-lhe os direitos políticos e viabilizando sua candidatura ou terão que engolir mais quatro terríveis anos de Jair Bolsonaro, em que tudo pode acontecer.
Nesse contexto, um evento de enorme importância aparece no horizonte. Trata-se do julgamento, pela segunda turma do STF, de habeas corpus impetrado pela defesa do ex-presidente visando à declaração de suspeição do ex-juiz Sério Moro, a anulação da condenação de Lula e a devolução de seus direitos políticos.
Ninguém menos do que o insuspeito Gilmar Mendes quer pautar o julgamento o mais rápido possível[2]. O resultado será fundamental para saber em que sentido soprarão os ventos da política brasileira.
Sim, nossa elite é míope; sim, ela joga contra os próprios interesses. No entanto, há contradições em seu interior e nada impede que o segmento menos tacanho consiga hegemonizar o processo. Tudo pode acontecer.
Uma coisa, no entanto, é certa: somente a esquerda pode derrotar Jair Bolsonaro.
[1] FREIRE, Sabrina. “Hoje, eleição presidencial teria Bolsonaro à frente de todos no 1º turno”. Poder 360. In: <https://www.poder360.com.br/poderdata/hoje-eleicao-presidencial-teria-bolsonaro-a-frente-de-todos-no-1o-turno/> Acesso em: 09/08/2020.
[2] ANDRADE, Hanrrikson; REZENDE, Constança. “Gilmar quer pautar ‘assim que possível’ processo de suspeição contra Moro”. UOL. Política. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/08/09/se-depender-de-gilmar-celso-votara-processo-de-moro-antes-da-aposentadoria.htm > Acesso em: 09/08/2020.
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