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Taciano Valério

Cineasta e a professor da UFPE

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Sobre Jean-Claude Bernardet: uma paixão alegre

Crítico de cinema, escritor, ator e diretor, há na imagem de Jean-Claude muitos. O que eu guardo é a imagem de um homem corajoso, livre e sensível

Jean-Claude Bernardet (Foto: Jean-Claude Bernardet/Divulgação)

Conheci Jean-Claude em 2013, depois de uma exibição do meu filme "Onde Borges Tudo Vê " no festival de Tiradentes. Ele me interrogou sobre o personagem Napoleão vivido pelo ator Everaldo Pontes. No filme, o personagem era cego e criava um rato. Em seguida perguntou quais eram minhas ideias para os próximos trabalhos e, assim, respondi que estava num projeto de um filme sem roteiro. Obviamente que havia uma premissa para o filme, mas a história se daria circunstancialmente.

Jean-Claude logo se interessou e entrou no filme. A partir disso, criamos uma longa amizade rendendo o filme Pingo D’água, a série Giga além de um trabalho que estou finalizando intitulado Abecedário sem pé e cabeça. Nossa amizade também rendeu discussões sobre nossas vidas e o Brasil em seu estado constante de resistência frente aos modos de fascismo que habitam o território nacional.

Sempre gostei de escutar Jean-Claude sobre os rumos nacionais e o que, às vezes, escutava dele me dava mais ânimo para continuar pensando no cinema e em nossos filmes. Muitas vezes Jean Claude esteve aqui em Caruaru, mas também em Garanhuns e outras cidades do interior de Pernambuco. Um pensador que sempre gostou das capilaridades interioranas.

Não nos víamos com frequência, por causa das distâncias, mas quando estávamos presencialmente juntos dávamos sentido aos atos criativos e artísticos. No dia 12 de julho recebi a mensagem de Fábio Rogério, cineasta, amigo e parceiro de Jean-Claude em vários filmes recentes: uma notícia muito triste. Jean Claude Bernardet faleceu. Assim, logo cuidei de me deslocar até São Paulo e vê-lo pela última vez.

Afeito a muitas amizades, pensador do cinema brasileiro, crítico de cinema, escritor, ator e diretor, há na imagem de Jean-Claude muitos, senão vários. O que eu guardo é a imagem de um homem corajoso e, acima de tudo, alguém livre e sensível. Jean Claude pensava o instante a partir da criação. Era um homem móvel em ideias e pensamentos que escutava muito e falava de forma incisiva sublinhando muitas vezes as incoerências dos nossos pensamentos.

Destaco no parceiro a sua dimensão de se colocar diante do outro como alguém que busca construir junto e se deixar levar pelo território alheio ao seu. Esse lugar alheio gera desconforto muitas vezes, pois aparece como estranho e, talvez, inacessível, mas era em espaços assim que Jean-Claude se tornava o que é.

Diante disso, construía pontes para temas comuns à vida dele, como a morte, o corpo e a sexualidade. Passamos a trabalhar a partir da ideia do mote comum na literatura popular e em cantadores nordestinos. Nomeávamos também o mote dentro de aspectos e métodos que impulsionava a criação e chegamos ao Abecedário sem pé e cabeça (ainda inédito) em que ele se ocupava de conversar com pessoas a partir de motes e disparadores quaisquer.

Destaco nesta obra, em série documental, o encontro dele com o médico, escritor e sociólogo paraibano Edmundo Gaudêncio, havendo uma amostra viva do caos que se transforma em filosofia. Também no filme Pingo d’água, a cena em que ele entra numa mala é memorável. Na série Giga, primeira e segunda temporada, Jean-Claude é um monge beneditino. O instante em que, num café, ele fala sobre a ideia de tempo também é inesquecível.

No filme Bia, Jean-Claude foi um orientador de uma tese, algo comum no tempo de docência na USP. Depois de um mês da sua morte, sinto a falta do amigo. Esses dias, revi o curta Cama Vazia, do cineasta sergipano Fabio Rogério. No curta, imagens mostram Jean Claude Bernardet internado. A sua voz ecoa num texto que expõe o terror capital da indústria de internação e da infâmia consagração dos medicamentos e cuidados médicos, enquanto território que monopoliza corpos e subjetividades.

No último plano do filme, uma cama vazia no hospital sugere que o personagem resistiu a tudo aquilo para se manter vivo, mas em casa. Diante da ausência de Jean-Claude Bernardet, a sua presença se faz em suas obras e gerações constantemente renovadas. O devir juventude é a premissa que melhor descreve este homem que não ousava deixar de se reinventar junto a outras gerações.

Jean-Claude Bernardet foi, para mim, uma paixão alegre.

Taciano com amigos, entre eles Jean-Claude Bernardet
Taciano com amigos, entre eles Jean-Claude Bernardet(Photo: Arquivo pessoal)Arquivo pessoal


Materiais os quais tem Jean-Claude Bernardet os quais o texto se refere:

Cena da Mala – Pingo D’água- Direção de Taciano Valério https://www.youtube.com/watch?v=FObiaMm70Lo

Fragmento da Série Ficcional Giga – Direção de Taciano Valério https://vimeo.com/1111633363

Fragmento da Série Documental Abcedário sem pé e cabeça – Direção de Taciano Valério

https://vimeo.com/1111639717

Curta metragem Cama Vazia, do diretor Fábio Rogério https://embaubaplay.com/catalogo/cama-vazia/

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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