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Carlos Carvalho

Doutor em Linguística Aplicada e professor na Universidade Estadual do Ceará - UECE.

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Sobretudo alguns

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Na última terça-feira (20), por alguns minutos o mundo desviou o olhar que mantém sobre o Brasil, voltando-se para o breve voo que o bilionário Jeff Bezos fez ao espaço, cujo objetivo é, futuramente, explorar o turismo espacial. O passeio de Bezos nos faz lembrar aquilo que disse José Saramago (1922-2010), quando do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura, em 1998. Na ocasião, ao falar sobre os cinquenta anos da assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o autor de A viagem do elefante (2008) disse: “... as injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria se alastra. A mesma esquizofrênica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante...”.

Atento observador da realidade, Saramago sabia exatamente o que dizia. Assim, enquanto o senhor Bezos invadia o espaço, tendo o seu “best day ever”, por volta de 800 milhões de outros terráqueos, que vivem com menos de dois dólares por dia, tentavam conseguir alguma coisa para matar a fome. Como não se consegue comprar nada para se alimentar de forma decente com dois dólares, todos os dias as filas de esfomeados crescem desesperadamente. Em Cuiabá, por exemplo, viu-se durante a semana centenas de pessoas em uma fila para receber ossos doados por um açougue da cidade. A notícia dos ossos reverberou pelos quatro cantos do Brasil, fazendo com que muitos percebessem o tamanho do abismo em que, por ódio ao pobre, meteram esse país.

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A miséria a qual o povo pobre brasileiro está submetido não é resultado do acaso, mas de recorrentes projetos de sucessivos governantes, sobretudo alguns, que não respeitam os mínimos limites da decência humana, se locupletando com o dinheiro público e dando de ombros para as necessidades mais básicas da população pobre. Esse tipo de governante não existiria sem, por exemplo, as palavras de apoio que proliferam nas colunas dos jornalões da mídia comercial. Governantes assim acham que gente pobre é lixo, e por isso deve ser expulsa da cidade. Agem dessa forma, pois contam com o beneplácito da parte fascistóide dessa sociedade que, acometida de “obstrução intestinal” histórica, se afoga nos próprios dejetos. É, contraditoriamente, a “massa cheirosa” que sonha em ser Jeff Bezos, mas faltam-lhes os 202,7 bilhões de dólares para tal. 

A cena registrada em Cuiabá é chocante, mas não inédita. Como comprovação do que afirmamos, voltemos ao ano de 1960, quando da publicação da obra Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Os registros no diário da autora começam no dia 15 de julho de 1955, terminando no dia 01 de janeiro de 1960. Os trechos que mostraremos a seguir constam da edição da editora Ática, de 2014, ilustrada por Vinicius Rossignol Felipe. Na entrada do dia 12 de julho de 1958, a autora registrou: “...Fui ao frigorífico, ganhei ossos...” (p.91). “Eu servi os ossos para fazer uma sopa” (p.92). Na entrada do dia 02 de agosto de 1958, Carolina Maria de Jesus registrou: “Passei no frigorífico, peguei uns ossos. As mulheres vasculham o lixo procurando carne para comer. E elas dizem que é para os cachorros...” (p.105). No registro feito no dia 23 de agosto do mesmo ano, a autora escreveu: “Passei no frigorífico para pegar os ossos. No início eles nos dava linguiça. Agora nos dá osso” (p.116). No dia 30 do mesmo mês e ano lê-se: “Passei no frigorífico, ganhei ossos” (p.118). Já no mês seguinte, no dia 02, tem-se: “Quando eu passava perto do frigorifico o caminhão de ossos estava estacionado. Pedi uns ossos para o motorista...” (p.119). Concluindo, no dia 04 de outubro de 1958, nossa autora registrou o seguinte: “Passei no frigorífico para pegar ossos” (p.124).

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De 1958 pra cá, lá se vão sessenta e três anos. Nesse período, vários presidentes, civis e militares, se alternaram no poder. Muitos, conscientemente, preferiram ver as Carolinas Maria de Jesus de longe, ignorando-as na fila do açougue, implorando por um osso. Outros, sobretudo alguns, hoje acusados de não terem amor ao semelhante, optaram não apenas por vê-las de perto, mas abraçá-las e beijá-las, proporcionando-lhes três refeições decentes por dia e dando-lhes esperanças de uma vida melhor. Mas você jamais lerá sobre isso nas colunas daqueles e daquelas, de cujas mãos também escorre o sangue de 546 mil pessoas assassinadas pelo ódio, a ganância, a intolerância e a corrupção.

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