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Francisco Calmon

Ex-coordenador nacional da Rede Brasil – Memória, Verdade e Justiça; membro da Coordenação do Fórum Direito à Memória, Verdade e Justiça do Espírito Santo. Membro da Frente Brasil Popular do ES

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STF, guardião da Constituição, não a cumpre

As aparentes relações promíscuas envolvendo ministros do Supremo Tribunal Federal afrontam diretamente os princípios da Administração Pública

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal (STF) - Brasília-DF - 09/06/2020 (Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

As dinâmicas pouco transparentes entre agentes públicos deixaram de ser um problema periférico e passaram a ocupar o centro da crise institucional brasileira. Quando relações privadas se infiltram no funcionamento do Estado, não se trata apenas de eventuais desvios individuais, mas de um processo de corrosão dos fundamentos republicanos que sustentam a democracia formal.

As aparentes relações promíscuas envolvendo ministros do Supremo Tribunal Federal afrontam diretamente os princípios da Administração Pública consagrados no artigo 37 da Constituição Federal, sintetizados no acrônimo LIMPE: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Esses princípios não são ornamentos normativos; constituem a espinha dorsal da atuação de todos os agentes públicos, nos três Poderes e em todas as esferas federativas.

Quando esses limites se desfazem, o Estado se afasta da legalidade substantiva e se aproxima de articulações informais que deformam o processo democrático. Não se trata apenas de condutas equivocadas, mas de uma arquitetura institucional tensionada, que passa a operar sob critérios casuísticos, relações de conveniência e zonas de sombra incompatíveis com a lógica republicana.

O episódio envolvendo o Banco Master, revelado no âmbito da Operação Compliance Zero, expôs de forma cristalina essa deformação. A Polícia Federal, ao identificar um “achado” envolvendo autoridade com prerrogativa de foro, agiu corretamente ao interromper as investigações e remeter os autos ao Supremo Tribunal Federal, evitando nulidades processuais. O rito foi formalmente correto. O problema não reside no procedimento, mas nos efeitos institucionais que dele decorrem.

A transferência automática da totalidade do inquérito ao STF e a imposição de sigilo ampliado pelo relator concentraram no próprio Supremo o comando integral de uma investigação sensível, produzindo um constrangimento institucional inevitável. A explicação pública do diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, funcionou como um espelho incômodo: ao agir com transparência, deslocou para a Corte a responsabilidade política pela condução do caso.

O contrato encontrado pela Polícia Federal entre o Banco Master e o escritório da advogada Viviane Barci de Moraes, esposa do ministro Alexandre de Moraes, agravou ainda mais esse quadro. Um contrato de escopo genérico, com previsão de pagamentos que poderiam chegar a R$ 129 milhões em três anos, firmado com um banco em situação financeira delicada, levanta questionamentos que extrapolam a legalidade estrita. A ausência de esclarecimentos públicos consistentes apenas aprofunda a sensação de opacidade.

Ainda que nenhuma ilegalidade tenha sido formalmente comprovada, o dano institucional já está produzido. 

A impessoalidade, princípio estruturante da Administração Pública, não se mede apenas pela licitude formal dos atos, mas pela capacidade de preservar a confiança pública na imparcialidade das instituições.

A legalidade formal pode permanecer intacta enquanto a confiança pública se deteriora. E confiança institucional é um ativo tão essencial quanto a autoridade jurídica. Quando ela se fragiliza, mesmo decisões tecnicamente corretas passam a ser contestadas, abrindo espaço para crises de legitimidade e para a instrumentalização política do Judiciário.

Não é casual, portanto, que o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Edson Fachin, tenha reconhecido a necessidade de debater diretrizes éticas para a magistratura. Ao afirmar que a consolidação da democracia exige a superação de personalismos que fragilizam as estruturas republicanas, Fachin admite, ainda que de forma indireta, que há um problema real de conduta institucional a ser enfrentado.

A proposta de um Código de Conduta –  tanto para o STF quanto para o Judiciário como um todo –  não surge do nada. Ela é sintoma de uma crise. Surge quando o limite entre o legal e o legítimo começa a se embaralhar, e quando comportamentos formalmente lícitos passam a comprometer a aparência de imparcialidade, condição indispensável para qualquer Corte Constitucional.

Edson Fachin, encontrou oposição em uma ala de ministros que passou a questionar publicamente o “momento” do debate ético. O ministro Dias Toffoli, diretamente envolvido em episódios recentes – como a viagem a Lima em um jatinho particular ao lado do advogado que defende Daniel Daniel Vorcaro, do Banco Master.

Nos bastidores da Corte, a leitura predominante foi a de que o código escancararia práticas naturalizadas, como a participação recorrente de ministros em eventos privados com grandes empresários, a exemplo do Fórum de Lisboa, o chamado “Gilmarpalooza”, organizado por instituto vinculado ao ministro Gilmar Mendes.

Diante desse cenário, não surpreende que uma ala do Supremo tenha reagido com resistência à proposta. A contestação interna expôs fissuras na Corte, agravou a tensão institucional e aprofundou a desconfiança pública, sobretudo quando a recusa ao debate ético surge justamente em meio a episódios que exigiriam maior autocontenção e transparência.

Uma república não suporta, por muito tempo, o embaralhamento entre funções públicas e interesses privados, nem o uso instrumental de cargos. Fortalecer a esfera pública exige restaurar limites claros, reafirmar a separação entre o público e o privado e impedir que relações particulares capturem o funcionamento institucional do Estado.

O retorno rigoroso aos marcos constitucionais do artigo 37 não é uma opção retórica, mas uma necessidade democrática. Sem legalidade substantiva, impessoalidade real, moralidade pública, transparência efetiva e eficiência institucional, o Supremo corre o risco de preservar sua autoridade formal enquanto perde, silenciosamente, sua legitimidade republicana.

Non omne quod licet honestum est. (Nem tudo que é lícito, é honesto).

Além de ser honesto, é preciso mostrar-se honesto. 

“À mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta", que significa que não basta ter qualidades ou virtudes; é fundamental que a imagem e a reputação transmitam essas qualidades para o público.

Francisco Celso Calmon com a colaboração de Lucas Cedro

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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