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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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Takaichi entre a história e o delírio

O problema não é apenas histórico. É jurídico — e de forma contundente

Nova primeira-ministra do Japão, Sanae Takaichi (Foto: REUTERS/Kim Kyung-Hoon)

A ascensão política da primeira-ministra japonesa Sanae Takaichi tem inspirado manchetes que a descrevem como uma espécie de “Thatcher japonesa” — uma líder disposta a endurecer posições, impor agendas ideológicas e testar limites geopolíticos. Mas a analogia só vai até certo ponto: se Margaret Thatcher operava dentro dos marcos legais do pós-guerra, Takaichi, ao contrário, avança sobre terrenos que o Direito Internacional e a própria Constituição do Japão proíbem explicitamente.

A mais recente controvérsia — suas declarações sobre o status de Taiwan — revelou não apenas ignorância histórica, mas uma tentativa politicamente calculada de reescrever compromissos jurídicos que vinculam o Japão desde 1945. É uma ruptura que não pode ser normalizada.

A História de Taiwan: Fatos Contra Ficções Políticas

Antes de examinar o gesto político, é preciso retornar à história. Taiwan integra a China desde a antiguidade. Há registros claros de presença e administração chinesas há mais de 1.700 anos. Durante as dinastias Yuan e Qing, o governo central estabeleceu estruturas administrativas formais, consolidando a soberania chinesa sobre a ilha.

A ruptura ocorreu apenas em 1895, quando o Japão, após guerra de agressão, impôs à China o Tratado de Shimonoseki e tomou Taiwan à força — um domínio colonial marcado por repressão violenta, resistência popular e episódios brutais como o levante dos Seediq em 1930.

Quando o Japão se rendeu em 1945, aceitou integralmente a implementação do Comunicado do Cairo (1943) e da Proclamação de Potsdam (1945), que determinaram — de maneira explícita — que Taiwan deveria ser restaurada à China. Foi o que ocorreu.

Não há, portanto, espaço jurídico para a ficção do “status indeterminado”. Essa invenção moderna serve apenas a objetivos estratégicos dos Estados Unidos e, mais recentemente, à agenda política de Takaichi.

Quando a Primeira-Ministra Confronta o Direito Internacional

O problema não é apenas histórico. É jurídico — e de forma contundente.

O Instrumento de Rendição do Japão (1945) determina que todos os governos japoneses subsequentes devem cumprir o disposto na Proclamação de Potsdam. Isso inclui, obrigatoriamente, a cláusula sobre Taiwan.

Além disso:

  • A Declaração Conjunta China-Japão de 1972 registra que o Japão “compreende e respeita” a posição chinesa de que Taiwan é parte inalienável da China.
  • O Tratado de Paz e Amizade de 1978, ratificado pelo Parlamento japonês, torna esse entendimento legalmente vinculante.

Ao insinuar que Taiwan teria um “status indefinido”, Takaichi rompe com esses compromissos. É um gesto ilegal e perigoso.

Margaret Thatcher podia ser dura, mas não rasgava a ordem jurídica que seu país havia assinado.

Violação também da Constituição Japonesa

O próprio ordenamento doméstico impede que Takaichi sustente suas afirmações: o Artigo 9 da Constituição do Japão renuncia ao uso da força e rejeita qualquer política que possa conduzir à guerra; e o Artigo 98 determina que os tratados internacionais ratificados pelo país devem ser “fielmente observados” e têm primazia sobre atos de governo.

As declarações da primeira-ministra violam diretamente o Tratado de 1978 — logo, violam a Constituição.

A “Thatcher japonesa”, portanto, não é apenas uma líder dura: é uma dirigente que flerta com a ilegalidade constitucional para construir sua base nacionalista.

Ambições Geopolíticas: Quem Takaichi Quer Imitar?

O endurecimento japonês não ocorre no vácuo. Takaichi tenta reposicionar o Japão como potência militar plena — objetivo que a extrema direita nacionalista cultiva desde os anos 1950. Ela pressiona por:

  • elevar os gastos militares para 2% do PIB;
  • desenvolver “capacidades de contra-ataque”, conceito que amplia o espectro ofensivo das Forças de Autodefesa;
  • revisar os Três Princípios Não-Nucleares, pedra angular da política pacifista pós-Hiroshima;
  • alinhar militarmente o Japão à estratégia de contenção dos EUA na Ásia.

É nesse ponto que a analogia com Margaret Thatcher ganha outra nuance. Thatcher expandiu o poder militar britânico, sim, mas sempre dentro das regras, sem ameaçar diretamente a estabilidade regional. Takaichi, ao contrário, aposta na confrontação com China — o maior parceiro comercial do Japão — e coloca a região num ciclo de risco crescente.

O que a retórica busca: “normalização” ou revisionismo?

O discurso da primeira-ministra embute uma narrativa perigosa: a de que o Japão estaria retomando sua “normalidade” como potência militar. Mas o que ela chama de normalização é, na verdade, um revisionismo profundo sobre a história da Segunda Guerra Mundial e sobre os compromissos assumidos pelo Japão desde 1945.

A retórica agressiva sobre Taiwan funciona como catalisador dessa agenda.

Thatcher e Takaichi: a diferença entre firmeza e temeridade

A comparação entre Thatcher e Takaichi tem limite claro:

  • Thatcher foi dura — mas previsível, legalista, alinhada à ordem multilateral.
  • Takaichi é dura — mas revisionista, disposta a confrontar tratados que o próprio Japão assinou.

Uma busca poder; a outra flerta com a ruptura.

Entre o cálculo e o risco

As declarações de Sanae Takaichi não são deslizes retóricos. São parte de uma estratégia coerente — e preocupante — de tensionar a Ásia Oriental em nome de um nacionalismo perigoso.

Cabe ao Japão decidir se deseja seguir o caminho institucional e pacifista que reconstruiu o país nos últimos 80 anos, ou se permitirá que a ambição pessoal de uma líder o arraste para escolhas incompatíveis com a estabilidade regional e com o próprio Direito Internacional.

Takaichi pode querer ser a Thatcher do Pacífico. Mas as leis, os tratados e a história dizem outra coisa.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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