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Maria Luiza Falcão Silva

PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England.

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Mapa do Caminho e a Nova Lógica da Liderança Climática

Transição energética redefine a liderança global ao conciliar segurança, desenvolvimento e responsabilidade climática rumo a trajetórias mais sustentáveis

Fotografia oficial da Cúpula do Clima (COP30) (Foto: Ricardo Stuckert/PR)

A transição energética avançou para o centro da diplomacia internacional, revelando contradições profundas entre segurança energética, desenvolvimento econômico e responsabilidade climática. Muitos dos países que hoje moldam a governança ambiental continuam, simultaneamente, entre os maiores produtores ou consumidores de combustíveis fósseis. Essa ambivalência, longe de desqualificar a liderança, ajuda a compreender a natureza complexa, gradual e geoeconômica da transição em curso. Em um mundo que se transforma em velocidade desigual, o chamado Mapa do Caminho tornou-se uma das peças mais importantes para orientar esse esforço coletivo.

O papel estratégico dos Mapas do Caminho no regime climático global

No âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCC), os Mapas do Caminho são instrumentos orientadores que descrevem trajetórias possíveis de redução das emissões de gases de efeito estufa. São documentos baseados em métodos científicos robustos, que oferecem aos países um percurso técnico, previsível e monitorável para alinhar suas políticas nacionais aos objetivos do Acordo de Paris.

Eles articulam metas graduais de emissões, projeções de custo, orientações tecnológicas e expectativas de financiamento climático, funcionando como um elo essencial entre compromissos diplomáticos e políticas concretas.

Ao mesmo tempo, esses documentos têm peso político. Representam compromissos nacionalmente determinados (NDCs), traduzem a visão de futuro de cada país e ajudam a construir confiança entre Estados que operam sob realidades energéticas, capacidades econômicas e níveis de desenvolvimento profundamente diferentes.

O Mapa do Caminho, assim, não é um roteiro estático. Ele expressa uma evolução coordenada, criando um horizonte compartilhado para um mundo que ainda depende majoritariamente de combustíveis fósseis, mas não pode se manter nessa dependência.

Transição energética e o papel dos países com matrizes fósseis

A convivência entre produção fóssil e protagonismo climático é um traço central da política global do século XXI. Estados Unidos, China, Canadá, Noruega, Emirados Árabes Unidos e Brasil ilustram essa circunstância: todos possuem setores fósseis relevantes e, ao mesmo tempo, exercem influência decisiva no avanço das soluções de baixo carbono.

Isso ocorre em parte porque a matriz energética global ainda se apoia fortemente em combustíveis fósseis. Mesmo com o avanço das energias renováveis, a substituição estrutural exige tempo, planejamento e investimentos monumentais. Nenhum país pode interromper abruptamente seu sistema energético sem colocar em risco sua estabilidade social, econômica e industrial. Somente sociedades que mantêm certo grau de estabilidade interna conseguem investir em alternativas verdes, ampliar infraestrutura, inovar tecnologicamente e formular políticas climáticas consistentes.

É nesse terreno que se revela a natureza dual dos grandes protagonistas climáticos. Eles são, simultaneamente, emissores significativos e motores da inovação verde. Essa posição lhes confere peso nas negociações multilaterais, não apenas porque são grandes economias, mas porque possuem capacidade financeira, tecnológica e institucional para influenciar o ritmo global da transição.

Além disso, é impossível ignorar que a inovação necessária para a transição energética — pesquisa, desenvolvimento tecnológico, infraestrutura física, manufatura avançada e eletrificação em larga escala — exige volumes colossais de capital. E esse capital, na prática, continua vindo majoritariamente de fontes associadas ao próprio sistema fóssil. Países frequentemente celebrados por sua liderança climática, como a Noruega, só puderam financiar modelos avançados de bem-estar social e investimentos verdes porque acumulam riqueza proveniente do petróleo.

A transição global, portanto, não ocorrerá por “pureza de origem”, mas pela capacidade de canalizar recursos — inclusive aqueles gerados parcial ou integralmente por combustíveis fósseis — para novos setores estratégicos. Idealizar alianças apenas com atores energeticamente “perfeitos” seria, nesse contexto, inviável: o mundo ainda depende de quem tem capital, e é com esses atores que as coalizões climáticas precisam dialogar para avançar.

A lógica estrutural das aparentes contradições

A presença de combustíveis fósseis nas economias que lideram a agenda climática não é uma exceção, mas sim a norma de um mundo em transição. A transformação das cadeias globais de energia, transporte e indústria exige décadas de investimentos e estabilidade geopolítica. Países que continuam produzindo petróleo, gás ou carvão podem exercer liderança climática desde que demonstrem capacidade de financiar alternativas, criar instituições robustas, inovar tecnologicamente e fortalecer a cooperação internacional.

Além disso, a eficácia da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima depende diretamente desses grandes emissores. Sem sua participação ativa, nenhuma meta global pode ser atingida. O que define a liderança climática não é a pureza energética atual, mas a capacidade de projetar soluções e influenciar a configuração institucional da transição. A contradição aparente é, na verdade, o retrato realista de uma economia global em mutação, onde antigos pilares convivem com novos arranjos tecnológicos, industriais e ambientais.

A contradição aparente revela a essência do momento histórico: vivemos uma transição incompleta. Países que ainda dependem dos combustíveis fósseis para garantir sua segurança energética são, paradoxalmente, aqueles que também estão na vanguarda da tecnologia verde, da diplomacia climática e da construção de instrumentos que permitem ao mundo avançar. Esse paradoxo é uma característica estrutural da economia global contemporânea, não um problema moral nem um erro estratégico.

Perspectivas para o período pós-COP30

A COP30, realizada em Belém no mês de novembro, representa um marco simbólico e político. Pela primeira vez, uma conferência do clima enfatiza não apenas a redução de emissões, mas o papel sistêmico das florestas tropicais, das soluções baseadas na natureza e do desenvolvimento sustentável em regiões de alta biodiversidade e densidade populacional relativa representada por povos originários e populações ribeirinhas, quase 50 milhões de pessoas. Esse encontro coloca o Sul Global no centro da discussão e redefine o papel dos Mapas do Caminho nos próximos anos.

No período pós-2025, espera-se uma convergência maior entre metas climáticas e políticas econômicas reais. Os Mapas do Caminho tenderão a incorporar diretrizes mais detalhadas sobre investimento em infraestrutura verde, integração entre energia, indústria, agricultura e proteção florestal, além de mecanismos mais sólidos de responsabilização. Também devem refletir a nova geometria do poder internacional, marcada pela ascensão dos países emergentes e pela ampliação da cooperação Sul–Sul.

O futuro da liderança climática será determinado pela capacidade de transformar contradições em potencial de mudança. Países que ainda dependem de combustíveis fósseis poderão exercer protagonismo se forem capazes de mobilizar recursos, impulsionar novas tecnologias, fortalecer instituições multilaterais e orientar a transição de forma justa e equilibrada.

Os Mapas do Caminho, nessa nova etapa, serão mais que documentos técnicos: funcionarão como bússolas para sociedades que precisam conciliar segurança energética, justiça climática e desenvolvimento sustentável. A transição será longa, mas o impulso fornecido pela COP30 abre espaço para uma governança mais realista, inclusiva e conectada às necessidades das próximas décadas.

O caso do Brasil

O Brasil ocupa uma posição singular e estratégica na geopolítica climática. Com uma matriz elétrica majoritariamente renovável, o país se destaca pela presença de hidrelétricas, pelo crescimento rápido da energia eólica e pela massificação da energia solar distribuída. Paralelamente, segue ampliando sua produção de petróleo, especialmente no pré-sal, e discute a exploração da Margem Equatorial, região marinha de elevada sensibilidade ecológica e próxima de áreas fundamentais para a dinâmica ambiental amazônica.

Essa dualidade sintetiza o dilema vivido por muitas economias emergentes: a necessidade de aproveitar recursos energéticos estratégicos enquanto se compromete com metas climáticas ambiciosas. A realização da COP30 em Belém reforçou o papel brasileiro como guardião de florestas tropicais e como líder do debate sobre soluções baseadas na natureza. O Brasil demonstrou que é possível articular desenvolvimento, proteção florestal e transição energética, ainda que conviva com contradições associadas à exploração de hidrocarbonetos. Ao propor mecanismos como o Fundo Florestas Tropicais para Sempre, projeta para o mundo uma visão inovadora de financiamento climático, na qual a manutenção do estoque florestal é tratada como ativo global.

O caso da China

A China representa, em escala monumental, o paradoxo estrutural da transição energética global. É uma das maiores emissoras do planeta e continua utilizando amplamente o carvão para garantir segurança energética e estabilidade econômica. No entanto, é simultaneamente a maior produtora de tecnologias essenciais para a descarbonização, incluindo painéis solares, turbinas eólicas, veículos elétricos e baterias de lítio. Sua capacidade industrial transformou a economia verde global, tornando tecnologias antes inacessíveis em soluções economicamente viáveis para países desenvolvidos e em desenvolvimento.

Ao mesmo tempo em que lida com desafios internos relacionados à redução da dependência do carvão, a China exerce liderança na difusão tecnológica e no financiamento climático, especialmente para países do Sul Global. Sua influência não deriva da perfeição ambiental de seu modelo energético atual, mas de sua capacidade de produzir em escala, inovar rapidamente e moldar mercados globais. No contexto pós-COP30, o papel chinês será decisivo para permitir que a transição energética avance com custos menores e maior velocidade.

Perspectivas para o período pós-COP30

A COP30 marcou um ponto de inflexão ao enfatizar o papel das florestas tropicais, da biodiversidade e das soluções baseadas na natureza dentro da agenda climática global. No período pós-2025, os Mapas do Caminho tendem a se tornar mais concretos, mais exigentes e mais conectados às realidades econômicas reais. Eles deverão incorporar diretrizes mais claras sobre infraestrutura verde, transição justa, integração entre setores produtivos e mecanismos mais sólidos de responsabilização internacional.

O Sul Global deverá ganhar espaço na definição dessas novas diretrizes, especialmente diante da ascensão de cadeias produtivas limpas e do fortalecimento da cooperação tecnológica entre países emergentes. Nenhum país, entretanto, terá condições de liderar isoladamente: a transição exigirá arranjos cooperativos mais amplos, que combinem desenvolvimento econômico com transformação energética e proteção ecológica.

O futuro será escrito por quem tiver coragem de enfrentar as contradições

Estamos diante de uma verdade incontornável: o mundo não será liderado por países que evitam suas contradições, mas por aqueles capazes de transformá-las em energia política, capacidade institucional e inovação tecnológica. O protagonismo climático do futuro não pertence aos que já concluíram sua transição, mas aos que estão dispostos a conduzir o processo mesmo enquanto ainda dependem parcialmente dos fósseis.

À medida que o mundo se aproxima dos limites temporais estabelecidos pelo Acordo de Paris — a redução global de emissões até 2030 e a neutralidade climática por volta de 2050 — cresce a tensão entre ambição e realidade. O prazo de 2030 deixou de ser uma data distante: ele está praticamente “no alcance da mão”, e muitos países ainda não iniciaram reduções compatíveis com a trajetória de 1,5°C.

Nesse contexto, a posição dos Estados Unidos sob o governo Trump representa uma das maiores incertezas estruturais do sistema climático internacional. Como o maior poluidor histórico e um dos maiores emissores atuais, o país desempenha papel decisivo na estabilidade das metas globais. A reversão de políticas domésticas sob o governo do negacionista Donald Trump, o incentivo explícito à expansão de combustíveis fósseis e o desmonte de regulações ambientais sinalizam um afastamento das rotas recomendadas pelo IPCC e pelas instituições multilaterais. A postura dos EUA cria um vácuo de liderança que outros atores tentam preencher — especialmente China, União Europeia e Brasil — mas também amplia o risco de que o planeta cruze pontos de inflexão climáticos antes que as metas acordadas possam ser materializadas.

O Acordo de Paris foi construído para resistir a crises, mas não para sobreviver indefinidamente à falta de cooperação das maiores economias do mundo, e esse tensionamento poderá definir a geopolítica climática dos próximos anos.

O Mapa do Caminho é mais do que uma diretriz técnica; é um teste de maturidade global. Depois da COP30, ele deixará de ser apenas um exercício de projeção e passará a ser o instrumento que separará países capazes de liderar daqueles que apenas discursam. O Brasil, com suas florestas, sua matriz limpa e seu pré-sal; e a China, com sua manufatura verde e seu carvão, são exemplos de que a liderança climática do século XXI não será linear — será construída no choque entre passado e futuro.

O mundo está entrando na década decisiva. E, ao contrário do que muitos imaginam, não serão os países perfeitos que ditarão o ritmo da transição, mas aqueles que tiverem coragem, escala e visão para redesenhar o sistema energético global enquanto ainda habitam suas imperfeições. A contradição não é um obstáculo: é a própria matéria-prima da liderança.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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