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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Tarde carioca

Até o mais amargo dos pessimistas reconhece: o Rio de Janeiro é maior que seus problemas

Pão de Açúcar (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

“O Rio tá triste que dá dó”. A mensagem de áudio prosseguiu com justificativas melancólicas: “É matança no morro, é vendaval, é ressaca, fora o medo de andar nas ruas. Ô Cosme, tem certeza mesmo que vai lançar o livro aqui? E ainda lá no centro?”. Terminou assim o alerta do meu amigo, morador do bairro do Peixoto, vizinho de Copacabana.

A crise de insegurança ameaça milhões de pessoas, em especial as mais humildes. Quem sofre um assalto pode perder a vida ou ficar traumatizado para sempre. Poucas sensações são mais aflitivas e cruéis. Porém, até o mais amargo dos pessimistas reconhece que a cidade é maior e mais forte que seus problemas.

É ver pra crer. Ao desembarcar na rodoviária, confusa como todas, a mistura de vozes aumenta a balbúrdia: “Táxi!”, “Uber!”, “Aceito cartão!”, “Aqui, moço”, “Direto pra Baixada!”, “Dois lugares para a região dos Lagos”. A sinceridade da moça do guichê, a Sonia, nos conquista. “Até o Leblon, 110 reais. Um pouquinho mais caro, mas o ar-condicionado é ótimo”.

Brota do rebuliço outra cena tipicamente carioca: um homem de sandálias de dedo, bermuda larga e camiseta regata, pega a minha mala e a de minha namorada. Ele pergunta se a viagem foi boa, se somos paulixxxtas. Há dez meses não ouvia um carioquêxxxs bem pronunciado. O que vemos ali é simpatia e hospitalidade. O homem simples que carrega nossa bagagem dá o seu melhor, é o cartão postal de uma cidade que ainda não desistiu de vencer seus medos.

Na fila do táxi, o carregador olha preocupado em todas as direções e a gente pergunta: “Cadê o motorista?”. “Deve tá no banheiro, só um minutinho”.

“Cheguei!”. Quem fala, ainda secando as mãos na calça, é Jair, o motorista. “O carro tá logo ali”. O “logo ali” é do outro lado da avenida, que Jair atravessa entre os carros com as duas malas, enquanto sinaliza para um ônibus e uma moto. Todos param e nos deixam passar.

Se para alguns toda essa sequência pode ser uma prova de desorganização e perigo, para outros é o jeitinho carioca, o improviso. Estou no segundo grupo.

Morador de Realengo, botafoguense, 65 anos, filhos e netos, Jair tem quase 40 anos na praça. Nos intervalos, vendeu sorvete, foi dono de boteco, borracheiro, anotador de jogo do bicho. Deu tudo errado. Só o táxi garantia a educação dos filhos.

Ao comprar o bar se endividou. Para pagar o agiota, fez o que sabia: trabalhou e trabalhou. Abria o botequim às seis da manhã e só fechava à noite. Para economizar no transporte, dormia atrás do balcão.

Um mês depois, Dagmar estrilou: “ou você volta hoje pro nosso quarto ou some de uma vez”. De novo, o táxi salvou Jair e seu casamento. O motorista conta tudo isso com a gramática perfeita. “Estudei só até o quarto ano, acontece que a minha mãe era a melhor professora do mundo”. Uma vida resumida em meia hora, narrada com elegância, delicadeza, bom humor. Até esquecemos do ar-condiconado. Quanto vale a sabedoria de Jair?

Nos países mais ricos do mundo, a segurança é exemplar, as ruas são limpas, os impostos bem aplicados. Mas porque, apenas para dar um exemplo, a população da Finlândia ou da Áustria ri tão pouco e quase não fala? Será a temperatura, a cultura do lugar, o temperamento? É possível passar um mês na Suíça sem abrir a boca.

Não tenho a pretensão de definir o que é melhor ou pior. Cada um faz sua opção e eu – com total sinceridade – prefiro os riscos cariocas à indiferença silenciosa de nossos irmãos europeus.

É a pensar nisso que piso mais uma vez na Rua do Ouvidor. Vai começar o lançamento de meu novo livro de crônicas, na livraria Folha Seca. O primeiro leitor a chegar me chama de irmão Cosme. O nome dele é Damião, veio do bairro do Maracanã com Lysa e o neto. Depois, meu irmão de verdade e sobrinhos. Também alguns amigos do curso de jornalismo, 40 anos de amizade. A colega do ginásio já tinha o livro, mas veio conversar e pegar a dedicatória. O Antônio convidou a namorada, a Leila veio com o marido. O Sylvestre tá solteiro. Thalia apareceu só, Teresa com o neto. De repente, a calçada histórica é dos meus amigos e amigas.

Nos bares em volta, a tarde é de glória. Em vez da chuva, a gentileza do samba. No lugar da ventania, o calor da feijoada. A tarde carioca se recolhe, alaranjada e em paz.  Por alguns momentos, o interesse pela leitura e alegria do reencontro venceram o terror da violência.

Acabou, mas continua
O livro Acabou, mas continua(Photo: Luis Cosme Pinto)

*“Acabou, mas continua”, o novo livro de Luis Cosme Pinto, vai ser lançado em 21/11/2025 na cidade de Bauru.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.