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Luis Cosme Pinto

Luis Cosme Pinto é carioca de Vila Isabel e vive em São Paulo. Tem 63 anos de idade e 37 de jornalismo. As crônicas que assina nascem em botecos e esquinas onde perambula em busca de histórias do dia a dia.

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Tempero

O incrível mistério da professora de culinária que nunca cozinhou na vida

Tempero (Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil)

Zilda e Hermínia. As duas viveram juntas por muitos e muitos anos. Não vou dizer que foram felizes para sempre, porque pode dar impressão errada. Mas quem viu garante: conviveram por décadas com amizade, alegria e lealdade.

Zilda gostava de ensinar. Hermínia sabia aprender.

As duas dispensavam palavras, conversavam com os olhos.

Zilda era professora da vida real, ainda que não tivesse a prática.

Hermínia se revelou aluna atenta. Entendia de primeira.

Amiga íntima das letras, Zilda nunca temeu verbos, crases ou hífens; a poliglota maranhense cantava em francês, discursava em espanhol, escrevia longas cartas para a tia italiana e tocava piano no início da noite.

Hermínia ouvia tudo, mas só aprendeu a assinar o nome quando tirou a carteira de identidade. As primeiras leituras, sempre pela mão da amiga e mestra, vieram nos livros de receita e nas revistas coloridas.

Zilda tinha 52 anos quando recebeu Hermínia, de 17. Tarde quente de outono, naquela fazenda longínqua do interior do Maranhão.

A dama do campo, que sequer fritara um bife na vida ou chorara diante de uma cebola, explicou à jovem os mistérios da boa culinária.

Como era possível ensinar se nunca, nunca mesmo, encostara a barriga no fogão? “Sei porque sei”, respondia Zilda.

A primeira lição foi o molho vermelho. Da escolha do tomate ao tempo de cozimento, a aprendiz captou tudo. Só havia um problema: ao querer agradar patroa e convidados, Hermínia fazia molho de tomate em todas as refeições. Até couve à mineira e purê de batata vinham afogados no caldo rubro e grosso, que por pouco não entrou na receita da feijoada de domingo.

A mestra percebeu e variou as aulas. Hermínia descobriu o molho branco, o bechamel, o de manteiga com sálvia; também de frutos do mar, de queijos misturados, de maracujá; e se encantou de vez com o molho ferrugem. Palavra que, até então, a jovem relacionava com as grades de ferro envelhecidas que via quando ia à cidade.

Hermínia já preparava banquetes de casamento e criava dois filhos quando Zilda se foi. Logo, a aluna também se despediu, não da vida, mas da fazenda.

Conheci a banqueteira, uma das preferidas dos festeiros endinheirados de São Paulo, durante uma reportagem.

Hermínia recordou as aulas de Zilda:

— Quando eu cozinhava a carne, que depois ia receber o molho ferrugem, ela me avisava: “Fogo alto cria água na panela e a carne, mesmo sendo filé, endurece”.

— O que você descobriu a partir disso?

— Eu pensei o contrário: se o excesso de calor provocava água e dureza, a chama baixa deixaria o cozimento mais lento e a carne mais macia.

— Aí você fez o quê?

— No dia seguinte, troquei o filé pelo coxão duro e cozinhei de acordo com o combinado. O resultado foi a carne mais saborosa da região e com uma vantagem: pela metade do preço!

No fim da entrevista, Hermínia revelou mais um delicioso segredo:

— Com o tempo, aprendi o melhor jeito de testar as receitas.

— Qual?

— Quando tiro a mesa, confiro todas as travessas. Se estão cheias, eu não preparo mais ou mudo o tempero. Já quando chegam vazias, não tem erro. Eu repito e aumento a quantidade para o próximo jantar.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.