Tempero
O incrível mistério da professora de culinária que nunca cozinhou na vida
Zilda e Hermínia. As duas viveram juntas por muitos e muitos anos. Não vou dizer que foram felizes para sempre, porque pode dar impressão errada. Mas quem viu garante: conviveram por décadas com amizade, alegria e lealdade.
Zilda gostava de ensinar. Hermínia sabia aprender.
As duas dispensavam palavras, conversavam com os olhos.
Zilda era professora da vida real, ainda que não tivesse a prática.
Hermínia se revelou aluna atenta. Entendia de primeira.
Amiga íntima das letras, Zilda nunca temeu verbos, crases ou hífens; a poliglota maranhense cantava em francês, discursava em espanhol, escrevia longas cartas para a tia italiana e tocava piano no início da noite.
Hermínia ouvia tudo, mas só aprendeu a assinar o nome quando tirou a carteira de identidade. As primeiras leituras, sempre pela mão da amiga e mestra, vieram nos livros de receita e nas revistas coloridas.
Zilda tinha 52 anos quando recebeu Hermínia, de 17. Tarde quente de outono, naquela fazenda longínqua do interior do Maranhão.
A dama do campo, que sequer fritara um bife na vida ou chorara diante de uma cebola, explicou à jovem os mistérios da boa culinária.
Como era possível ensinar se nunca, nunca mesmo, encostara a barriga no fogão? “Sei porque sei”, respondia Zilda.
A primeira lição foi o molho vermelho. Da escolha do tomate ao tempo de cozimento, a aprendiz captou tudo. Só havia um problema: ao querer agradar patroa e convidados, Hermínia fazia molho de tomate em todas as refeições. Até couve à mineira e purê de batata vinham afogados no caldo rubro e grosso, que por pouco não entrou na receita da feijoada de domingo.
A mestra percebeu e variou as aulas. Hermínia descobriu o molho branco, o bechamel, o de manteiga com sálvia; também de frutos do mar, de queijos misturados, de maracujá; e se encantou de vez com o molho ferrugem. Palavra que, até então, a jovem relacionava com as grades de ferro envelhecidas que via quando ia à cidade.
Hermínia já preparava banquetes de casamento e criava dois filhos quando Zilda se foi. Logo, a aluna também se despediu, não da vida, mas da fazenda.
Conheci a banqueteira, uma das preferidas dos festeiros endinheirados de São Paulo, durante uma reportagem.
Hermínia recordou as aulas de Zilda:
— Quando eu cozinhava a carne, que depois ia receber o molho ferrugem, ela me avisava: “Fogo alto cria água na panela e a carne, mesmo sendo filé, endurece”.
— O que você descobriu a partir disso?
— Eu pensei o contrário: se o excesso de calor provocava água e dureza, a chama baixa deixaria o cozimento mais lento e a carne mais macia.
— Aí você fez o quê?
— No dia seguinte, troquei o filé pelo coxão duro e cozinhei de acordo com o combinado. O resultado foi a carne mais saborosa da região e com uma vantagem: pela metade do preço!
No fim da entrevista, Hermínia revelou mais um delicioso segredo:
— Com o tempo, aprendi o melhor jeito de testar as receitas.
— Qual?
— Quando tiro a mesa, confiro todas as travessas. Se estão cheias, eu não preparo mais ou mudo o tempero. Já quando chegam vazias, não tem erro. Eu repito e aumento a quantidade para o próximo jantar.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

