Trump desmonta a ciência e ameaça décadas de pesquisa contra o câncer
Com cortes de 37% no Instituto Nacional do Câncer (NIH), Trump ameaça 80 anos de liderança biomédica dos EUA, reduzindo a taxa atual de 68% de sobrevivência
Rachel Maddow é uma das vozes mais afiadas e consistentes do jornalismo norte-americano contemporâneo. Doutora em política pública, comentarista da MSNBC e autora de livros de investigação rigorosa, ela se consolidou como intérprete lúcida da crise democrática nos Estados Unidos. E foi com a contundência habitual que, em entrevista recente, trouxe à tona um tema que, pela gravidade, parece ultrapassar os limites da racionalidade política: a campanha de Donald Trump para desmantelar o sistema nacional de pesquisa sobre o câncer.
O sistema que salvou milhões de vidas
Na metade da década de 1970, apenas 49% dos pacientes diagnosticados com câncer nos Estados Unidos conseguiam sobreviver cinco anos após o diagnóstico. Hoje, graças a décadas de investimentos contínuos, esse índice alcança 68%. Foram anos de construção institucional, cooperação científica e apoio bipartidário que moldaram um ecossistema capaz de salvar milhões de vidas, gerar milhares de empregos e consolidar os EUA como líder global em pesquisa biomédica.
Esse sistema, que se tornou referência mundial, foi desenhado para resistir a interferências políticas. Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) e, em particular, o Instituto Nacional do Câncer (NCI), foram concebidos para estar acima das disputas de ocasião, protegendo a ciência de ciclos eleitorais.
Aqui, como observador externo, não posso deixar de ver uma ironia cruel: um país que soube construir instituições de longo prazo para garantir o avanço da ciência agora se permite corroer esse mesmo patrimônio em nome de um cálculo político imediato. É como se a lógica da destruição tivesse se infiltrado no próprio coração do sistema que foi criado para resistir à destruição.
O ataque sem precedentes
E, no entanto, é exatamente esse sistema que agora se encontra sob ataque direto. O orçamento proposto por Donald Trump para 2026 prevê um corte superior a 37% nos recursos destinados ao Instituto Nacional do Câncer. Não se trata de ajuste fiscal. Como aponta Jonathan Mahler em reportagem publicada na New York Times Magazine e analisada por Maddow, a medida faz parte de um ataque direcionado, planejado e deliberado.
Um oficial do próprio NCI reconheceu que a Casa Branca “estudou como os Institutos Nacionais de Saúde funcionam, estudou intensamente e aprendeu bem – para então colocar areia nas engrenagens de formas eficazes e devastadoras”. Um ex-dirigente do NIH, com 18 anos de experiência, foi taxativo: “É um desastre absoluto e sem atenuantes. Vai levar décadas para nos recuperarmos disso, se conseguirmos.”
Essa fala ressoa em mim como metáfora da vulnerabilidade humana: basta um ato de poder mal direcionado para comprometer conquistas civilizatórias inteiras. Não são apenas cientistas que sofrem. São pacientes, famílias, sociedades inteiras. O que se está em jogo é mais que um orçamento — é o pacto ético entre governo e cidadãos, rompido de forma explícita.
Cui bono?
A pergunta que ecoa é inevitável: quem ganha com isso? Maddow insiste na interrogação. Mahler também. Não existe eleitorado pedindo o fim da pesquisa sobre o câncer. Não há base ideológica ou movimento conspiratório que associe a pesquisa científica ao inimigo interno. Diferente das vacinas, que foram demonizadas em meio à pandemia por grupos antivacina e teorias de conspiração, a pesquisa contra o câncer sempre foi vista como consenso – quase um pacto civilizatório.
E, ainda assim, Trump e seus assessores parecem dispostos a arruinar um sistema que levou 50 anos para ser consolidado. Jonathan Mahler resume: “A corrida de 80 anos da América como líder mundial em pesquisa biomédica e os 50 anos como líder global em pesquisa sobre o câncer podem estar chegando ao fim. E sem razão aparente.”
Penso, diante dessa constatação, no silêncio cúmplice que se instala quando políticas insanas se transformam em rotina. A ausência de resistência efetiva normaliza o absurdo. Como em tantos momentos sombrios da história, a indiferença coletiva permite que um ato sem razão aparente se imponha como fato consumado.
O sarcasmo que virou programa de governo
É impossível não recordar a cena da campanha presidencial de 2024, quando Trump, em duelo contra Kamala Harris, ironizou em comício: “Votem em mim. Eu acabarei com a pesquisa sobre câncer. Votem em mim. Eu sou a favor de mais câncer.”
À época, o comentário soava como bravata grotesca, mero sarcasmo de campanha. Hoje, transformou-se em política oficial, inscrita no orçamento federal. O grotesco deixou de ser piada para se converter em projeto de governo.
Destruição sem substituição
Mahler enfatiza: não se trata de reformar o sistema, nem de redesenhá-lo em moldes mais eficientes. Não há qualquer plano alternativo. Não há promessa de que, com a retirada do governo, a iniciativa privada assumirá o protagonismo. Não há um “faremos isso para alcançar aquilo”. Há apenas cortes. Há apenas o desmonte.
A hipótese mais benigna seria enxergar nisso uma tentativa de “desestabilização criativa”, no estilo Vale do Silício: destruir estruturas para abrir caminho ao setor privado. Mas até essa leitura é frágil. O que se constata é a ausência de qualquer proposta consequente. O vazio, aqui, é absoluto.
Ao refletir sobre esse vazio, percebo como o poder político, quando guiado por impulsos destrutivos, pode ser ainda mais perigoso do que a doença em si. O câncer é tragédia biológica; já o desmonte da pesquisa é tragédia moral. Um ataca corpos, o outro ataca consciências e esperanças.
O caráter deliberado da ofensiva
A entrevista conduzida por Maddow revela o que mais espanta cientistas e analistas: a ofensiva não é improvisada. Ela foi preparada com cuidado, planejada passo a passo, estudada para atingir em cheio o que deveria ser o coração imune da política científica norte-americana.
É o que torna a medida ainda mais perturbadora. Não é acidente, não é descuido, não é erro técnico. É projeto político consciente.
A pergunta que não cala
Maddow encerra a entrevista com a inquietação que dá título ao seu programa: “Por que diabos Donald Trump está destruindo a pesquisa de câncer?!”
A pergunta, feita com ironia indignada, revela-se o ponto central: não há justificativa racional. Não há benefício eleitoral. Não há retorno econômico. Não há explicação que resista ao teste da lógica.
O que resta é a perplexidade diante de um governo que, em nome de uma agenda opaca, desmonta uma das conquistas mais extraordinárias da ciência moderna.
Entre a vida e a sombra
O resultado imediato é o risco de retrocesso: pesquisas paralisadas, tratamentos interrompidos, esperança comprometida. O resultado histórico pode ser ainda mais devastador: a perda do papel de liderança dos EUA na ciência biomédica, posição construída ao longo de oito décadas.
E, enquanto isso, milhões de pacientes aguardam. Para eles, o tempo não é recurso renovável. A cada dia, a cada corte, a cada sabotagem institucional, o que se destrói não é apenas um orçamento, mas a própria possibilidade de sobreviver.
E é nesse ponto que minha percepção se torna mais pungente: destruir a pesquisa contra o câncer é, em última instância, um atentado contra o futuro. É reduzir a política ao presente imediato, sacrificando gerações que poderiam se beneficiar dos avanços científicos. O governante que age assim não compromete apenas sua biografia: compromete a própria ideia de humanidade que deveria proteger.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




