Um Silva, empresário; um Souza, gari: os perigos da nova mentalidade brasileira
Assassinato de gari expõe a ascensão de uma mentalidade de ódio e desprezo que ameaça corroer a democracia brasileira
O assassinato do gari Laudemir de Souza Fernandes, em Belo Horizonte, pelo empresário Renê da Silva Nogueira Júnior, ganhou ampla repercussão. Não porque tal violência seja rara no Brasil — muito pelo contrário. A violência de classes perpassa todos os níveis e esferas da vida social. O que torna este caso singular não é o crime em si, mas o seu efeito semiótico e representacional.
De um lado, a figura do trabalhador precarizado, mal remunerado, invisível e socialmente estigmatizado por exercer uma função que, na ideologia dominante, opera como exemplo negativo — a profissão que encarna o destino a ser evitado por aqueles que perderam a esperança, inclusive no estudo formal. Trata-se de um ofício impregnado pelo racismo e pelo preconceito de classe. Do outro lado, ergue-se a imagem do empresário bem-sucedido, personificação acabada da direita brasileira contemporânea. Não por acaso, sua fisionomia lembra a capa da revista Veja de 2004, intitulada “A Força da Direita”, peça de um projeto midiático que, semana após semana, cultivava um ódio irracional a Lula e ao PT, alimentando o antipetismo. Na capa, vê-se um homem de costas, vestido de terno, cujo braço direito rasga a própria roupa com força descomunal — metáfora que se ajusta quase perfeitamente à figura do empresário-assassino.
Mas o que aprendemos com este desfecho, se é que se pode abstrair, ainda que por um instante, da dor dos familiares, amigos e colegas de Laudemir? O ato em si parece ter sido movido por uma mentalidade infantilizada, um alter ego de gibi: uma espécie de super-homem frustrado, incapaz de conter uma força desmedida.
Não devemos, entretanto, nos deter no passado irrecuperável da vida perdida, mas compreender o programa social e político que se revela nesse crime. O zumbi, aqui, funciona como metáfora: ele é a utopia da ideologia, sua representação mais fiel. O zumbi não pensa, apenas reage; converte vida em morte e morte em vida; é a figura da conformação integral.
A gravidade do crime não reside apenas em sua obviedade — a barbárie racista que atravessa a história do Brasil há cinco séculos. O verdadeiro horror está em seu caráter simbólico, em sua potência como signo de um país marcado pela experiência necropolítica do bolsonarismo. O empresário não é apenas um indivíduo; é a encarnação de uma nova mentalidade social. Seu ato não pode ser compreendido senão à luz de uma cultura do ódio, de desprezo pelo trabalhador, pelo negro e pelo pobre. Como um zumbi de academia, hipertrofiado de proteínas, ele age como um corpo programado para matar. Esse gesto revela uma formação coletiva: há centenas de outros corpos e mentes fervilhando com o mesmo ódio, alimentados pelo mesmo caldo de racismo, sarcasmo, escárnio, indiferença e irresponsabilidade. Esse é o verdadeiro precipício sobre o qual se equilibra a democracia.
O denominador comum dessa mentalidade em formação não é apenas a ausência de empatia, mas algo mais concreto: a falência do respeito. O capitalismo, ao nivelar artificialmente as diferenças sob o disfarce da igualdade formal, corrompe a própria noção de respeito. A falsa universalidade da “liberdade de expressão” é um exemplo disso: invertida em sua função, passou a ser instrumento de corrosão da democracia. Assim, instala-se um campo aberto onde a lógica do ódio floresce e se arma contra negros e pobres, garis e domésticas, mulheres e trans, nordestinos e indígenas, analfabetos e deficientes. O respeito torna-se privilégio de classe. O empregado deve dizer, ao servir o café: “é um prazer lhe servir”; o empregador, ao contrário, sente-se desobrigado de qualquer reciprocidade.
Uma sociedade estruturada no respeito dispensa a empatia como suplemento moral. O respeito é condição basal, universal, que antecede qualquer sentimento. A empatia, isolada, corre o risco de se degradar em paternalismo burguês, em pena piedosa dirigida ao oprimido. A raiz do assassinato de Laudemir, portanto, não está numa falta de sensibilidade, mas na aniquilação da própria noção de respeito que deveria atravessar todas as relações sociais.
Nesse contexto, as redes sociais têm funcionado como o laboratório privilegiado dessa corrosão. O respeito, reduzido a resquício moralista, tornou-se palavra obsoleta, sepultada no cemitério ideológico de Hollywood clássico. Como observa Byung-Chul Han em No Enxame, a lógica algorítmica dissolve o pathos da distância, requisito do respeito, substituindo-o pela proximidade excessiva do escândalo permanente. A nova mentalidade que emerge é, pois, inseparável da forma digital: uma mentalidade sem distância, sem silêncio, sem freio.
O assassinato cometido às 9h da manhã do dia 11 de agosto de 2025 não é episódio isolado, mas síntese de um projeto histórico em curso. O mais estarrecedor não foi apenas o crime, mas a rotina banal que o sucedeu: o passeio com o cachorro, o treino na academia — a normalização do horror. Não se trata de psicopatia individual, mas de um programa coletivo de subjetivação: a conversão do cidadão em soldado civil.
As ditaduras clássicas desfilavam tanques nas avenidas; as contemporâneas manejam algoritmos e fabricam mentalidades. É disso que se trata: um exército invisível em gestação, multiplicado exponencialmente por redes digitais, cuja força não depende da coerção explícita, mas da adesão cega a uma lógica de ódio. O crime em Belo Horizonte é apenas um signo, um estopim, um espelho. E o que ele nos mostra não é apenas a morte de um homem, mas o nascimento de uma mentalidade que, se não for enfrentada, ameaça soterrar de uma vez a democracia brasileira.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

