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Marcelo Gruman

Doutor em Antropologia Social (MN/UFRJ); especialista em Gestão de Políticas Públicas de Cultura (UnB); atualmente é administrador cultural da Funarte/MinC

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Usos e abusos da melancia

A melancia, no entanto, não é a personagem principal desta comédia pastelão, mas a frase "isso aqui é nosso, isso aqui eu ponho quem eu quiser"

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Na semana passada, foi divulgado áudio em que um senador da república diz, em alto e bom som, que poderia indicar até mesmo uma “melancia” para o cargo de superintendente da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) do Distrito Federal, afinal, ainda segundo suas sinceríssimas palavras, “isso aqui (a SPU) é nosso. Isso aqui eu ponho quem eu quiser”. Contextualizando: a gravação ocorreu durante discussão com servidores contrários à indicação de um apadrinhado político do referido senador da república, sob o argumento de que o indivíduo agraciado com a benesse do cargo público é sócio de uma imobiliária e, por isso, não poderia comandar o órgão que administra terras da União no DF.

 
Divulgado publicamente o áudio, o senador da república correu para explicar o inexplicável, e a emenda saiu pior do que o soneto. Afirmou o representante do povo (ainda que, sendo suplente, não tenha recebido voto algum) que o termo “melancia” refere-se a “apelido carinhoso” dado ao senhor novo superintendente. E por que ele é carinhosamente chamado de “melancia”? Porque é “branquinho, loiro e tem uma barriguinha”.
 
Você, querido leitor, querida leitora, teria a coragem de comer uma melancia “branquinha e loirinha”? Qual seria a sua reação se o feirante lhe oferecesse uma melancia pálida? Não ficaria com a impressão de que a fruta está ligeiramente passada? Incomível, na língua do saudoso (!) ministro Antônio Magri?  Não ficaria tentado (a) a denunciar o comerciante aos órgãos de defesa do consumidor?
 
Não, senador. Melancias não são “branquinhas” nem “loirinhas”. Pelo menos, não aqui no Rio de Janeiro.
 
Também é difícil de acreditar que a tal melancia flagrada no áudio se referisse a um ser humano qualquer. Na verdade, buscar contra-argumentos lógicos e racionais à explicação estapafúrdia do senador da república é bastante constrangedor e beira o ridículo, mas farei um esforço de baixar ao seu (des) nível.
 
Em primeiro lugar, a melancia em questão é a fruta pura e simples, como um poste, um objeto inanimado, porque o flagrado utilizou o artigo definido feminino “uma”, e não o artigo definido masculino “o”. A menos que o apaniguado tenha decidido pelo gênero feminino, o que, se for o caso, dou meu total apoio porque vivemos uma época em que a  nós é dado o direito de ser aquilo que queremos ser, a utilização gramatical equivocada fará corar de vergonha, além do frade de pedra, a ex-professora de português do dono da cocada preta, digo, da Secretaria de Patrimônio da União do Distrito Federal.  
 
Em segundo lugar, ainda que houvesse sido utilizado o artigo definido masculino, não faria o menor sentido dentro do contexto em que se deu a discussão, uma vez que, aparentemente, os servidores que foram exortados a esvaziarem as gavetas e se apresentarem à seção de pessoal do Ministério do Planejamento “pra ver onde vai lotar esse povo lá” (um cavalheiro, pois não), não tinham conhecimento da forma carinhosa como indicador e indicado se tratam. Passaria por louco ou pelo alemão de piada que diz “o melancia que quiser”.
 
Explicações inexplicáveis, o clássico “batom na cueca” de um lado, devaneios igualmente idiotizados e escrachados, embora críveis, de outro.
 
A melancia, no entanto, não é a personagem principal desta comédia pastelão, mas a frase “isso aqui é nosso, isso aqui eu ponho quem eu quiser”. É mais um dentre os incontáveis e, aparentemente, irremediáveis, quem sabe mesmo atávicos e inescapáveis, exemplos de apropriação do espaço público por interesses privados, o famoso “O Estado sou eu”, o “você sabe com quem está falando?”, o viés patrimonialista, oligárquico e autoritário arraigado nas profundezas da alma nacional. Sentem-se os donos do poder, e nós, os bestializados, que pagamos a fatura no final do mês.
 
Como essa gente, incluída aqui a melancia, consegue colocar a cabeça no travesseiro e dormir o sono dos justos?
 
São amorais.

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