UX: Experiência do usuário e a batalha pela reputação
Como o design digital molda nossa identidade, limita nossa autonomia e aprofunda desigualdades no cotidiano conectado
A internet prometeu-nos um universo de liberdade, conexão e expressão, mas nos entregou uma vida pautada por métricas implacáveis: likes, estrelas, avaliações e engajamento. Vivemos mediados por telas que não só exibem o mundo, mas determinam o que vemos, sentimos e, em grande parte, quem podemos ser. UX (Experiência do Usuário) e UI (Interface do Usuário) são termos técnicos que rapidamente escalaram para o campo político, pois definem a estrutura de nossas interações nas plataformas. A UX é o panorama completo da nossa interação com um sistema digital: design, facilidade, emoção, confiança e acessibilidade.
Ela se tornou um pilar estratégico do capitalismo digital. A Forrester Research aponta que cada dólar investido em UX pode retornar até cem, provando que não se trata de mera estética, mas de um negócio altamente lucrativo. As métricas e dados que circulam carregam significados profundos, cuja tradução completa ainda é incipiente.
Enquanto as plataformas operam com estratégias rigorosamente calculadas, nós, usuários, desenvolvemos táticas de sobrevivência nesse ecossistema. O antropólogo Michel Alcoforado observa que o "mundo dos ricos" dita tendências que se tornam aspirações universais, e as plataformas, com seus algoritmos, filtros e recompensas visuais, amplificam esse ideal. A cada like, contribuímos para a construção dessa vitrine incessante onde lutamos para ser vistos.
O episódio “Nosedive”, de Black Mirror, é o espelho mais óbvio dessa realidade: a vida é regida por uma nota social de 1 a 5. A protagonista performa a perfeição até que sua nota despenca, seu mundo desmorona, uma faceta reacionária aparece e ela entra em looping.
Hoje, a realidade dos “influencers” e a nossa própria trajetória digital já ecoam essa distopia. Quem nunca deletou uma foto por ter poucas curtidas? Quem não modula o comportamento para se proteger de linchamentos virtuais? E, mais criticamente, como pessoas negras, trans ou com deficiência precisam negociar sua própria visibilidade e existência com algoritmos que falham em reconhecer a diversidade de corpos? A UX do cotidiano já está imersa nesse modelo: recompensas (gamificação), punições silenciosas e o constante medo de ser excluído. A linha entre design e controle social é cada vez mais tênue.
Métricas: faróis que iluminam e escondem
As plataformas nos observam silenciosamente: tempo de permanência, desistências, cliques, inação. Métricas como bounce rate (taxa de rejeição), taxa de conversão e NPS (satisfação) são faróis que ditam as prioridades corporativas.
O grande risco reside em um princípio perigoso: o que é medido se torna o que importa, e o que não se encaixa nas métricas simplesmente desaparece.
Usuários com deficiência podem levar mais tempo em uma tarefa, o que é lido como “dificuldade” em vez de uma falha de design. Pessoas trans podem ser vetadas por filtros automatizados. A navegação lenta de pessoas em vulnerabilidade social pode ser confundida com “desinteresse”. Métricas mal interpretadas criam formas de exclusão sutis, silenciosas e profundamente excludentes.
O jogo de poder: estratégias e táticas
As plataformas definem as estratégias — fluxo, visual, algoritmo. Nós, usuários, criamos as táticas para sobreviver a elas, em uma lógica que lembra Michel de Certeau. As elites criam o padrão; os aplicativos o transformam em regra; e tentamos existir nesse hiato.
A visibilidade digital é negada a quem não tem o corpo ou a voz “esperados”. Por exemplo, a voz grave feminina (como a das fumantes nos anos 80/90, símbolo de poder e proximidade com o “homem poderoso” da propaganda) foi uma tática de poder, mas não um design universal. Ainda estamos muito distantes de um design que abrace a pluralidade radical dos usuários.
Acessibilidade: um imperativo político
Para pessoas como eu, monocular e usuária de tecnologias assistivas, a UX é uma questão de acesso ou de barreira. Botões pequenos, contraste incorreto, navegação confusa ou a ausência de audiodescrição são elementos de exclusão. Quando a vida migra para o digital, a exclusão digital é, de fato, exclusão social. Discutir UX é discutir cidadania; falar de UI é garantir o respeito por meio da acessibilidade.
O retorno de uma UX ética
Os ganhos de uma UX inclusiva transcendem o lucro:
- Maior autonomia para quem historicamente esteve à margem.
- Redução de barreiras para pessoas com deficiência.
- Mais espaço de expressão para pessoas trans e travestis.
- Menor dependência de métricas que geram violência simbólica.
- Criação de ambientes digitais mais democráticos e menos tóxicos.
A experiência do usuário só será significativa quando reconhecer o usuário em sua pluralidade. Ninguém deve ser diminuído por não se encaixar em um design feito para um modelo único de corpo, desejo ou vida.
Não somos dados, somos sujeitos
Enquanto o design priorizar a conversão de vendas acima da humanidade, viveremos versões mais suaves — e, por isso, mais insidiosas — do que Black Mirror já retratou. A UX é, hoje, um campo de batalha pelos direitos, já que a vida é cada vez mais mediada por telas. Em 2022, após um evento em Brasília, percebi que colegas na área de informática educacional não conseguiam dimensionar a diversidade que eu apontava. Eles viam “gueto” ou “periferia”; eu via quase 68 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza. Embora esse número tenha caído no governo Lula (para pouco mais de 50 milhões), a luta continua.
Seguimos no embate: eles com suas estratégias, nós com nossas táticas. Mas ainda há tempo para reverter esse jogo. Isso começa com uma UX que entenda que, antes de usuários, somos sujeitos: complexos, inteiramente humanos e radicalmente diversos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

