Velhice
Envelhecer é muito bom, mas numa sociedade onde a imensa maioria é destituída de quase tudo, envelhecer com calma, saúde e paz acaba sendo mais um privilégio
Fui instado a fazer o que 3,5 milhões de brasileiros (quase todos muito jovens) fizeram há poucos dias, no Enem: escrever um texto sobre a velhice. "Perspectivas acerca do envelhecimento na sociedade brasileira", era o título da prova. Tudo bem, tenho até o lugar de fala, sou idoso há 11 anos (tenho 71).
Antes de mais nada, envelhecer é bom. A experiência, as habilidades adquiridas, as lembranças e histórias, filhos, netos... Mas de um ponto de vista mais confessional, não é sempre fácil. O fôlego é curto e o cansaço longo, pois o tempo e os anos de fumante cobram seu preço. As reações são mais lentas, o raciocínio idem, por causa da perda de elasticidade, de massa muscular, de neurônios. Nos falta paciência. O tempo leva alguns amigos, a distância e as dificuldades de locomoção afastam outros. A visão, a digestão, a circulação, a função hepática, as articulações... Tudo diminui ou piora, exceto a dependência, que aumenta. A estatística, nossa amiga na juventude, passa a ser nossa inimiga!
Não estou reclamando, longe disso. Envelhecer é mesmo bom, e eu sou grato. Sou otimista, levo no humor, sigo o Zeca Pagodinho e deixo a vida me levar. Apenas constato que há problemas a resolver, cuidados a tomar... e alguns desses cuidados podem ser caros ou difíceis, mesmo inacessíveis. Aqui chegamos ao assunto... as tais perspectivas. São vários aspectos (‘aspecto’ vem do mesmo verbo grego que perspectivas) diferentes, desde o aumento da expectativa de vida e o investimento necessário para manter as aposentadorias por mais tempo, até o apoio social que o Estado precisa dar para seus cidadãos, especialmente os idosos. Transporte, cuidados cotidianos, saúde, afeto, alimentação, lazer... Como em um meme, o que nós velhos fazemos? Onde vivemos? O que comemos? O Estado liberal – vá lá, o Mercado - abomina essas perguntas e essa discussão por motivos óbvios. Pra que gastar dinheiro com pessoas que, além de descartáveis, não produzem mais, na opinião dele, o Mercado? Parte do etarismo que grassa na sociedade vem dessa irritação do topo da pirâmide, desmontando e demonizando o próprio instituto da aposentadoria, e por consequência seus beneficiários.
Sim, envelhecer é muito bom, mas numa sociedade onde a imensa maioria é destituída de quase tudo, envelhecer com calma, saúde e paz acaba sendo mais um privilégio, mais um “lançamento exclusivo”. E para o resto da sociedade é um problema sério. Queremos carinho, queremos respeito a nós e à nossa experiência, mas queremos mais Estado. Queremos mais políticas públicas voltadas para essas pessoas que chegaram “meio que” heroicamente até aqui. É desumano e, francamente, é muita burrice não cuidar direitinho de um ativo econômico/social/afetivo tão grande... Isso mesmo, me refiro a nós, a velhitude do Brasil!
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.



