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Maior espetáculo natalino do país inspirado na cultura brasileira aposta na soberania em vez de neve, renas e Papai Noel

A ópera popular “Baile do Menino Deus: Uma Brincadeira de Natal”, encenada de 23 a 25 deste mês no Recife, faz contraponto à influência estrangeira

Baile do Menino Deus (Foto: Divulgação)

247 – A ebulição artística do maior espetáculo natalino do país baseado na cultura brasileira é intensificada em 2025 sob o viés da expansão - o “Baile do Menino Deus: Uma Brincadeira de Natal” absorve novas linguagens e artistas na composição cênica caracterizada pela brasilidade e ganha o streaming com a inclusão de um especial na plataforma do Globoplay. As inovações revigoram os contornos de pluralidade da encenação alçada a Patrimônio Imaterial do Recife (em 2024) e promovida há mais de duas décadas nos dias 23, 24 e 25, no Marco Zero da cidade, sempre às 20h, para uma plateia presencial estimada em 70 mil pessoas e outras milhares em exibição virtual.

O Baile é um espetáculo com viés sincrético criado como contraponto à influência estrangeira de elementos de países de clima frio nas celebrações natalinas. A encenação dispensa os artifícios incompatíveis com a cultura de uma região tropical e garimpa nas manifestações populares, na oralidade e na tradição os recursos para construir uma identidade própria e nacional de tributo à renovação da vida. Saem de cena trenós, neve, renas e entram maracatus, frevo, caboclinho, reisado, expressões de ontem e hoje costuradas para representar, no palco, a brasilidade legada pelos povos formadores - indígena, negro e ibérico - e questões pertinentes à sociedade brasileira (inclusão, solidariedade, desigualdade, oportunidade). 

A trama apresenta a busca de dois Mateus pela casa onde nasce o menino para fazer uma festa sob consentimento de José e Maria. A peregrinação é atravessada por encontros com criaturas fantásticas do imaginário popular, grupos de expressões artísticas e dilemas existenciais, sociais e coletivos - como falta de oportunidade, portas fechadas, metáforas sobre a vida em sociedade. Em 2025, em dezembro, o Baile apresentou pela primeira vez uma versão em Goiana, na Mata Norte do estado, e realizou um cortejo inédito pelas ruas do Bairro do Recife, no domingo 14, com elenco do espetáculo acompanhado por grupos do ciclo natalino e carnavalesco - foram mais de 300 artistas seguidos por centenas de pessoas, exibição de força cultural em contraste com desfile de viés consumista de caminhões de refrigerantes alçados a símbolos do natal. 

As apresentações tradicionais deste ano na semana de Natal serão arejadas com mudanças no elenco a partir da entrada do sanfoneiro Flávio Leandro, nome prestigiado no panteão forrozeiro do Nordeste e do Brasil - ele participou do filme sobre o Baile gravado em teatro no ano de 2021. O músico está escalado para a cena do pastoreio do boi, passagem melódica de reverência a uma figura mística do Nordeste associada à ancestralidade e à fertilidade. 

O grupo de solistas do espetáculo também conta, neste ano, com a cantora pernambucana Joyce Alane, nome em ascensão da música brasileira finalista do Grammy Latino com o álbum “Casa Coração” e indicada ao Prêmio Multishow de artista revelação. “Joyce Alane tem se destacado no cenário musical pela beleza de sua voz e presença de palco marcante. Tê-la como convidada no Baile do Menino Deus, interpretando três músicas do repertório, muito abrilhanta o espetáculo”, observa o autor e diretor, Ronaldo Correia de Brito. “Estou muito feliz de fazer parte dessa encenação. O Natal é uma data muito especial para a minha família, e muitos já foram assistir ao Baile nos anos anteriores. Esse ano vai ter um gosto especial me vendo participar”, acrescenta a cantora - a participação marca uma dupla estreia para a artista: a primeira vez no Baile e no palco do Marco Zero.

A pluralidade cênica do Baile se estende com a inclusão de mais uma manifestação brotadas das ruas: o popping, dança mundialmente popularizada pelo cantor Michael Jackson no clipe da música “Moonwalker”. O gênero de movimentos livres e ‘robóticos’ se junta ao hip hop e a outros gêneros constituintes da arte pernambucana e brasileira - caboclinho, maracatus, frevo. A apresentação no espetáculo será conduzida pelo dançarino Dimas Popping, expoente do gênero, junto ao corpo de baile fixo da montagem. “É impressionante trazer esse cara para dentro do espetáculo”, afirma Ronaldo.

Em 2025, o quarteto de Mateus passa por modificação - entra o ator Djaelton Quirino no lugar de Paulo Pontes (envolvido em outros projetos no período) para fazer dupla com Daniel Barros. O estreante é de Arcoverde e fundou a Companhia de Retalho. Eles se revezam com Sóstenes Vidal e Arilson Lopes, par de brincantes populares desde a estreia da montagem.

A encenação reserva outras mudanças com a renovação de cenas, arranjos, personagens e adaptações características de uma obra viva e em constante reformulação para refletir as nuances da cultura brasileira, captar e provocar reflexões sobre a contemporaneidade - à luz da arte popular e das matrizes dos povos formadores: indígena, negro e ibérico. “Nós incorporamos toda a cena, temos grupo de hip hop e break de uma das favelas mais miseráveis do Recife, a do Arruda, e temos uma cantora de brega, um sanfoneiro famosíssimo. O Baile é um grande guarda-chuva que incorpora tudo que o Recife, o Brasil e o mundo produzem. Temos esse olhar, um pé no popular e outro na tradição, porque essa é a nossa cultura”, diz Ronaldo. 

HISTÓRIA

O “Baile do Menino Deus: Uma brincadeira de Natal" nasceu em 1983 a partir do desejo dos amigos Ronaldo Correia de Brito, Assis Lima e Antonio Madureira (Zoca) de ver um auto de Natal entremeado pelas tradições universais e brasileiras. Foi lançado como e, desde 2004, sob a produção da Relicário Produções, faz parte do calendário oficial do principal palco a céu aberto do Recife, o Marco Zero - ao lado dele, só o carnaval e a Paixão de Cristo. Em 2024, se tornou Patrimônio Imaterial da cidade - o título reconhece o prestígio de atrair mais de 70 mil pessoas todos os anos às apresentações, ter virado dois filmes, paradidático do MEC e servido de inspiração, até hoje, a centenas de montagens Brasil afora.

O Baile mantém um rodízio frequente, no palco, de artistas renomados da música brasileira - de Lia de Itamaracá a Elba Ramalho, Tizumba, Chico César, entre outros. Em 2025, nomes como Flávio Leandro, expoente do forró, e Maestro Spok, ícone do frevo e do jazz brasileiros, estão no elenco do espetáculo. “Ao longo desse tempo, a gente vem ganhando um reconhecimento da imprensa local e nacional como o grande espetáculo de Natal deste país. É o reconhecimento de muito trabalho da produção, do elenco, de uma construção que já está no imaginário do pernambucano”, comemora Carla Valença, da Relicário, diretora de produção da encenação.

O espetáculo é costurado entre a tradição religiosa milenar do nascimento de Jesus, filho de Maria e José, e características incorporadas de folguedos e brincadeiras populares, como o ritual de abertura da porta do reisado. O Baile tem duas versões em filmes - ambas gravadas na pandemia, uma no teatro e outra na rua, e disponíveis no YouTube - e forma, em livro, uma trilogia sobre os ciclos festivos populares ao lado de “Bandeira de São João” e “Arlequim de Carnaval.

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