Piauí aposta em soberania digital com IA própria e mira liderança nacional
Governador Rafael Fonteles detalha LLM em português, nuvem soberana estatal e uso de inteligência artificial em segurança e saúde públicas
247 - O estado do Piauí decidiu transformar a pauta da soberania digital em política de governo. À frente desse movimento está o governador Rafael Fonteles (PT), matemático de formação, que conduz um ousado programa de inteligência artificial (IA) com foco em infraestrutura própria, proteção de dados sensíveis e formação de capital humano. No centro da estratégia está o “soberania”, modelo de linguagem em português voltado ao setor público e operado em data centers controlados pelo poder estatal.As declarações foram dadas em entrevista ao programa Forças do Brasil, da TV 247, apresentado por Mário Vitor Santos. Ao longo da conversa, Fonteles explicou como o Piauí criou a primeira Secretaria de Inteligência Artificial do país, descreveu a arquitetura técnica do projeto e defendeu que o Brasil acelere o investimento em hardware e software próprios para não depender da infraestrutura de big techs estrangeiras.
Um LLM soberano em português: o projeto “soberania”
Logo no início da entrevista, o governador detalha a decisão política que deu origem ao projeto: criar uma estrutura específica de governo para IA. “Nós tomamos uma decisão de criar a Secretaria de de Inteligência Artificial, é a primeira do país, para exatamente capacitar e desenvolver ferramentas de inteligência artificial aqui no estado que atendesse as demandas do governo e da sociedade de forma geral”, afirmou.
Dentro dessa secretaria nasceu o “soberania”, um modelo de linguagem de grande porte (LLM) desenhado para o português brasileiro. Fonteles resumiu o conceito: é “uma linguagem de inteligência artificial em português soberana”. A ideia central é que o sistema seja treinado em um gigantesco conjunto de dados em português, com curadoria cuidadosa. Segundo o governador, a base já se aproxima de “500 bilhões de palavras”, construída para evitar que “se o dado for ruim, a linguagem vai aprender errado”.
O desenvolvimento reúne cerca de 70 pesquisadores brasileiros, alguns piauienses e outros de instituições de renome em diferentes estados. A estrutura societária do projeto também foi pensada para reforçar o controle público: o modelo é “majoritariamente do estado do Piauí”, operado em parceria com um Instituto de Ciência e Tecnologia e startups associadas.
Infraestrutura própria, chips importados e nuvem sob controle estatal
Fonteles faz questão de distinguir dois níveis de autonomia: o do software e o do hardware. No campo do software, ele diz que “do ponto de vista de autonomia da linguagem matemática e da base de dados é total”. Já na infraestrutura, reconhece que o Brasil não produz chips de alta performance, mas insiste que isso não impede a soberania digital se os equipamentos forem de propriedade do Estado e estiverem instalados no país.
Para viabilizar essa infraestrutura, o governo do Piauí firmou parceria com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A ministra Luciana Santos, relata o governador, foi ao estado para anunciar um aporte inicial via FNDCT de “da ordem de R$ 35 milhões” para montar a infraestrutura computacional em território piauiense. Ele ressalta que, embora os chips sejam importados, “eles serão de propriedade do estado do Piauí. Portanto, garante o conceito pleno de soberania digital”.
Quando questionado sobre eventuais “portas traseiras” nos equipamentos fornecidos por grandes fabricantes globais, Fonteles assegura que, uma vez instaladas, as GPUs e supercomputadores estarão “totalmente blindadas”, desde que haja investimento consistente em cibersegurança. Ele compara: o nível de proteção é “superior a, por exemplo, você contratar a nuvem de uma Bigtec que roda aqui no Brasil”, ainda que essas soluções sejam consideradas seguras.
Big techs como fornecedoras, não operadoras
O governador defende uma linha de cooperação estratégica, mas com limites claros na relação com grandes empresas de tecnologia. Ele admite que “as bigtecs podem ser parceiras no fornecimento desses equipamentos”, pois o país não fabrica chips de última geração. Porém, enfatiza que o ponto crucial é o controle da operação: “o domínio da propriedade dessas estruturas, além delas rodarem em território nacional, a nosso ver, uma boa parte delas para exatamente trabalhar esse dado mais sensível tem que ser de propriedade do governo”.
Em sua visão, o risco está em utilizar a infraestrutura das big techs sem que o Estado brasileiro tenha autonomia para gerir o ambiente. Por isso, defende que elas atuem “no fornecimento desses equipamentos”, mas não como operadoras de toda a nuvem que hospeda dados críticos de governos e estatais.
Data center próprio e ambiente híbrido: offline para dados críticos
Fonteles descreve a arquitetura física da operação. O cérebro técnico do projeto está na Empresa de Tecnologia da Informação do Piauí (ETIPI), empresa estatal com prédio e data center próprios, além de parceria com a Universidade Federal do Piauí (UFPI). “É lá que estão os supercomputadores que nós adquirimos e é lá que nós vamos fazer todo esse investimento”, explicou.
Para dados mais sensíveis, o governador defende que parte do processamento seja feita fora da internet, em redes fechadas: “tem dados um pouco mais críticos que teriam que ser rodados num ambiente fechado em relação à internet, mas outra parte dos dados tem que usar sim a internet com todos os itens de cybersegurança”. A combinação entre ambientes offline (intranet) e online, com camadas robustas de segurança, é apresentada como um dos pilares da soberania digital em infraestrutura.
BO Fácil, saúde digital e segurança: IA já em uso no Piauí
Longe de ser apenas um projeto de laboratório, o “soberania” já opera em aplicações concretas, especialmente nas áreas de segurança e saúde. Um dos exemplos citados por Fonteles é o BO Fácil, serviço que permite à vítima de violência registrar boletim de ocorrência pelo WhatsApp.
Segundo o governador, “essa aplicação está disponível e ela roda localmente num supercomputador adquirido pelo estado do Piauí para garantir exatamente essa soberania dos dados”. O atendimento é feito por um assistente de inteligência artificial do governo, baseado no modelo soberania.
Na segurança pública, o estado também utiliza a IA no sistema de monitoramento “espia”, que faz leitura de placas de veículos e identificação de pessoas. Na saúde, a plataforma de saúde digital realiza “mais de 100.000 procedimentos por mês” e já atingiu 1 milhão de procedimentos em pouco mais de um ano, com apoio da IA na análise de exames de imagem e na priorização de casos mais graves na fila de atendimento.
Secretaria de IA, escola pública e servidores: formação em larga escala
Um dos aspectos mais singulares do experimento piauiense é a aposta em formação de larga escala em inteligência artificial, tanto para estudantes quanto para servidores públicos. Fonteles considera a IA “uma daquelas inovações tecnológicas mais disruptivas da história da humanidade” e compara seu impacto ao da internet.
Para não ficar para trás, o governo estadual introduziu IA como disciplina obrigatória do 9º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio. De acordo com o governador, isso envolve cerca de “120.000 alunos que estudam IA no currículo normal” e exigiu uma força-tarefa para capacitar “mais de 800 professores”.
O objetivo, diz ele, é que “o capital humano esteja preparado para usar essas ferramentas”, já que “a IA existe, mas quem opera são seres humanos que têm que estar devidamente capacitados para isso”. Além disso, o Piauí está promovendo capacitações para servidores públicos e pretende estender a formação a outros poderes.
Piauí como vitrine e laboratório para outros estados e para o governo federal
Fonteles afirma que a experiência piauiense tem atraído atenção de todo o país. “Nós temos recebido visitas aqui de boa parte ou quase todos os estados da federação que vem in loco ver o que nós estamos fazendo aqui”, relata. Ele diz compartilhar as soluções desenvolvidas com outros governos estaduais dentro de uma lógica de “federalismo cooperativo”.
No plano federal, o principal interlocutor é o MCTI, que acolheu o projeto e passou a apoiá-lo financeiramente via FNDCT. O governador destaca a convergência com o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PEBIA) e com empresas públicas como Serpro e Dataprev, que já operam infraestruturas computacionais relevantes.
Vulnerabilidades brasileiras e a urgência da soberania digital
Provocado sobre notícias envolvendo empresas estrangeiras operando infraestruturas críticas e episódios de espionagem contra autoridades e instituições brasileiras, Fonteles não entra em detalhes, mas usa o contexto como argumento para acelerar o investimento em soberania digital.
Para ele, além do debate regulatório no Congresso sobre o uso ético da IA, é indispensável “acelerar os investimentos em infraestrutura, em hardware e em software para aumentar a soberania digital brasileira”. O risco, sintetiza, é que o país tenha dois caminhos pouco aceitáveis: ou não se beneficia da aplicação da IA sobre a enorme quantidade de dados nacionais, ou o faz “entregando esses dados para players externos, sejam países ou empresas estrangeiras”.
A alternativa proposta é usar parcerias internacionais para acessar tecnologia, mas garantindo que “esses dados brasileiros aumentem, portanto, a produtividade das empresas nacionais, dos governos nacionais, com a devida segurança de não ter que compartilhar esses dados”.
Quatro soberanias estratégicas e o lugar da IA
Na parte final da entrevista, o governador amplia o foco e fala de soberania em sentido mais amplo. Segundo ele, hoje o mundo discute essencialmente quatro dimensões: a alimentar, a energética, a de defesa e a digital.
Fonteles avalia que o Brasil está relativamente bem em soberania alimentar e energética, enfatizando a importância de políticas de combate à fome e a existência de uma matriz energética predominantemente limpa. Porém, considera que “a soberania digital é talvez a mais desafiadora para o caso brasileiro” e defende que o tema esteja “na pauta do dia de todas as instituições” para garantir investimentos “robustos e céleres” em infraestrutura computacional e desenvolvimento de softwares nacionais de IA.
Metas de governo, reeleição e a força da associação com Lula
O governador também falou sobre política e o cenário eleitoral do próximo ano. Ele afirma que seu plano imediato é cumprir os compromissos assumidos em 2022: “Nós tínhamos em torno de 160 compromissos, já cumprimos 93% desses compromissos. Então eu quero garantir 100% de cumprimento dos compromissos assumidos na campanha eleitoral de 2022”.
Fonteles confirma que pretende disputar a reeleição ao governo do Piauí quando chegar o período eleitoral, sempre associado ao projeto liderado pelo presidente Lula. Segundo ele, a popularidade de Lula no estado “chega na casa de 80%” e vive uma fase de “recuperação muito robusta”, fenômeno que, diz, também é percebido em conversas com outros governadores do Nordeste.
Ele atribui essa recuperação a uma combinação de fatores: maior volume de entregas de programas como o PAC e o Minha Casa Minha Vida, controle inflacionário em itens essenciais, melhora na comunicação do governo e a postura do presidente diante do recente conflito diplomático com os Estados Unidos. Na sua avaliação, Lula entra na disputa por um quarto mandato como favorito, “inclusive com uma diferença em relação ao candidato opositor maior do que a que tivemos em 2022”.
Segurança pública, crime organizado e integração institucional
Questionado sobre o papel da segurança pública no debate eleitoral, o governador defende uma postura de endurecimento contra o crime organizado e apresenta números do estado. Ele afirma que o Piauí é hoje “o estado com menor número de homicídios do Nordeste brasileiro” e que, de 2022 para cá, houve redução de mais de 30% no indicador, saindo da faixa de 24 homicídios por 100 mil habitantes para algo abaixo de 17. A meta é chegar a 10 homicídios por 100 mil habitantes, patamar próximo ao de países desenvolvidos.
Fonteles atribui os resultados à combinação de investimento em efetivo, inteligência e integração. Para ele, “o problema de segurança pública é complexo, são várias engrenagens. Se um elo dessa engrenagem funcionar mal, o combate ao crime ele não é efetivo”. Por isso, defende o trabalho articulado entre polícias estaduais, Polícia Federal, Ministério Público, Receita e Judiciário, evitando que “cada um fique cuidando da sua caixinha”.
Ele também menciona propostas do governo federal, como a PEC da segurança pública, o PL anti facção e um pacote de nove projetos consensuados por secretários estaduais, como evidências de que o tema vem ganhando centralidade no campo político em que se insere.
Piauí se coloca como vitrine da soberania digital brasileira
Ao se despedir, Rafael Fonteles reforça a ideia de que o Piauí quer ser visto como um laboratório de políticas públicas baseadas em IA, mas com a soberania digital como fio condutor. Ele convida o público a conhecer o estado e sintetiza a ambição política e tecnológica do projeto: desenvolver aplicações de inteligência artificial que melhorem serviços em áreas críticas, como saúde e segurança, ao mesmo tempo em que mantêm os dados sensíveis sob controle público em território nacional.
Na leitura do governador, a disputa por soberania digital será um dos eixos estruturantes do desenvolvimento brasileiro nos próximos anos. O experimento piauiense, com secretaria própria de IA, LLM em português, data center estatal e aplicações já em uso, é apresentado como um ensaio prático de como essa agenda pode ser conduzida em escala nacional. Assista:



