Como os marxistas sempre se opuseram ao sionismo
Os marxistas sempre se opuseram ao sionismo e, até a Segunda Guerra Mundial, coincidiam com o sentimento da maioria dos judeus em todo o mundo
Leia um trecho de "Onde falham os esquematismos e as simplificações", texto escrito por Jacob Gorender em 1998 como prefácio à primeira edição de "Marxismo e judaísmo". O livro já clássico de Arlene Clemesha ganha nova edição, completamente revista e ampliada, e chega em primeira mão aos assinantes de março do Armas da Crítica - o clube do livro da Boitempo.
Por Jacob Gorender (Blog da Boitempo)
De fato, como sugere o título deste livro, a abordagem da questão judaica pelo marxismo não tem sido fácil. Ao lado de um acervo de estudos esclarecedores, sem dúvida valiosos, o marxismo também registra não poucas derrapagens, quando teóricos e pesquisadores, adeptos do seu método, pretenderam explicar o que foram e são os judeus, as causas do antissemitismo e as propostas socialistas para a questão judaica.
Resultado de uma dissertação de mestrado, aprovada com distinção e louvor no Departamento de História da Universidade de São Paulo, a obra de Arlene Elizabeth Clemesha oferece ao público brasileiro uma excursão notavelmente interessante pelos meandros sinuosos do tema. O texto, enxuto e acessível, se distingue pela erudição e pelo recurso frequente às fontes originais (exceto as de língua iídiche), incluindo bibliografia atualizada e de grande riqueza.
O ponto de partida da excursão é a primeira manifestação de Marx sobre o tema: um artigo de 1843 intitulado “Sobre a questão judaica”. Quando o escreveu, Marx ainda não havia dado formulação conclusiva à teoria do materialismo histórico, associada ao seu nome. Mas se encontrava adiantado na sua elaboração, e “Sobre a questão judaica” é tido como um dos avanços mais importantes em direção ao revolucionamento realizado por seu autor no âmbito das ciências históricas.
O artigo adquiriu outro significado, que o torna mais importante ainda no contexto da pesquisa de Arlene Clemesha. Alguns autores o consideram uma expressão de antissemitismo e mesmo uma proposta genocida que anteciparia a “solução final” nazista. Uma vez que o próprio Marx tinha origem judaica, tais autores explicam seu antissemitismo como reação psicológica extrema de repúdio às raízes de sua identidade.
A autora se empenha em demonstrar os equívocos e erros grosseiros de semelhante interpretação. Marx, com efeito, faz uma crítica dura ao judaísmo enquanto religião, caracterizando-o como a religião que prioriza a necessidade prática, o interesse egoísta. Simultaneamente, afirma que a sociedade burguesa absorveu o espírito do judaísmo ao também atribuir prioridade à necessidade prática. Na sociedade burguesa, o cristianismo se havia judaizado. Dessa maneira, a emancipação civil dos judeus, embora constituísse um passo progressista importante, não os libertaria das limitações e opressões inerentes à condição burguesa. O objetivo supremo não podia ser a emancipação civil, mas a emancipação humana. O artigo se conclui com a declaração de que emancipar socialmente o judeu equivale a emancipar a sociedade do judaísmo. Ou seja, libertá-la dos vínculos com a necessidade prática egoísta imanente nas relações mercantis.
Ora, como adverte H. B. Davis, Marx não diz nada da religião judaica que não diga da religião cristã. Criador da concepção filosófica materialista mais radical, Marx foi um crítico intransigente de todas as religiões.
O período histórico em que Marx viveu assinalou, na Europa ocidental, o declínio acentuado do antissemitismo. Os judeus saíam dos guetos e passavam a gozar de direitos civis e políticos. Depois do mencionado artigo, Marx não voltou mais a tratar da questão judaica em um trabalho especial. Limitou-se a fazer referências esparsas e ocasionais, como na primeira das “Teses sobre Feuerbach”, na qual critica o filósofo alemão por conceber a prática na sua forma de manifestação sordidamente judaica. Reitera, nessa passagem, a ideia da necessidade prática egoísta como fundamento da religião judaica.
Tendo sobrevivido a Marx durante doze anos, Engels assistiu ao recrudescimento do antissemitismo no final do século XIX. Conquanto não lhe tenha dedicado um estudo especial, Engels expressou, repetidas vezes, o mais cabal repúdio ao antissemitismo, destacando, em particular, a exploração esmagadora a que eram submetidos os operários judeus em Londres.
A partir daí, o movimento socialista europeu não podia deixar de enfrentar a questão judaica. O antissemitismo é uma ideologia de direita, o que não carece de demonstrações. Contudo, há também um antissemitismo de esquerda e um dos méritos deste livro consiste em focalizá-lo, o que possivelmente surpreenderá a muitos leitores. A identificação do judeu ao usurário, ao explorador mercantil mais impiedoso (personificado no Shylock, da peça O mercador de Veneza, de Shakespeare), foi internalizada pela massa dos trabalhadores e assumida como enfoque socialista por partidos operários. Arlene menciona o antissemitismo de Fourier, Proudhon e Bakunin e registra a recusa dos socialistas franceses, liderados por Jules Guesde, de participar na campanha em favor da libertação do
capitão Dreyfus e, por conseguinte, na luta contra o antissemitismo, quando da sua primeira manifestação explosiva na Europa ocidental. Coube a Jean Jaurès, como diria Rosa Luxemburgo, a missão de salvar a honra do socialismo francês.
A Segunda Internacional foi enfática na condenação ao antissemitismo, mas essa posição tampouco se assumiu sem passar por ambiguidades. Assim, foi sintomático que Victor Adler, um dos principais teóricos da Segunda Internacional, ele próprio de origem judaica, tenha propugnado uma posição contrária tanto ao antissemitismo como ao filossemitismo, colocando ambos em termos equivalentes. Karl Kautsky e Otto Bauer superaram essa vacilação e não tiveram ressalvas à condenação do antissemitismo. Ambos deram contribuição primordial à análise da situação dos judeus no emaranhado étnico europeu, em particular no Império Austro-Húngaro. Todavia, consideraram que a chamada questão judaica se resolveria pelo processo de assimilação e recusaram a concessão da autonomia cultural às populações judaicas. O que não poderia deixar de se chocar contra reivindicações das populações judaicas numerosas e densas de regiões da Polônia, da Rússia e da Galícia, esta última pertencente ao Império Austro-Húngaro.
Lênin foi um adversário radical e caloroso do antissemitismo, insistindo muitas vezes sobre seu conteúdo ultrarreacionário. No entanto, Lênin teve de polemizar com o partido socialista judeu conhecido por Bund (União Geral dos Operários Judeus da Rússia, Polônia e Lituânia; em iídiche “união”, “associação”), o qual reivindicava a autonomia cultural para os operários judeus e o reconhecimento de sua identidade na luta do proletariado. Lênin defendeu o ponto de vista de que a questão nacional se subordinava aos interesses de classe e, portanto, o proletariado do Império Russo não poderia ser dividido por características nacionais. O líder bolchevique também adotava a opinião de que o problema judaico se resolveria pelo processo de assimilação, já em curso na própria Rússia. Deixava de levar em conta que o antissemitismo obstaculizava o processo de assimilação e que os judeus da Europa central e oriental estavam criando, naquele momento mesmo, uma literatura de alto nível estético em língua iídiche.
A história da União Soviética demonstra ou, ao menos, sugere que o socialismo não constitui solução automática para a questão judaica. A ditadura do proletariado não implica necessariamente a extinção da ideologia antissemita. Preconceitos milenares não se dissolvem apenas com a mudança do regime. A
adoção de soluções corretas, do ponto de vista dos próprios princípios marxistas, exige conhecimentos factuais e elaboração teórica profunda, nem sempre disponível. Por sua dispersão, pela integração, em diversos graus, em muitas nações, pelas tradições e pela cultura, os judeus não podem ser compreendidos através de esquemas e simplificações, das quais o marxismo nem sempre está isento.
Arlene Clemesha cita, a propósito, Abraham Léon, autor de um ensaio sobre a questão judaica, ele próprio judeu polonês e adepto do trotskismo, assassinado aos 26 anos em Auschwitz. Remontando à Antiguidade e à Idade Média, Léon mostra como o antissemitismo constituiu o estigma fixado nos judeus por sua especialização comercial e usurária, em meio a populações agrárias produtoras fundamentalmente de bens de uso. Tendo em vista o futuro, o jovem ensaísta propugnou a liberdade dos judeus para decidirem sem coações entre a assimilação ou a conservação de sua identidade.
Apesar de se dedicarem com empenho ao estudo da questão judaica, os marxistas foram surpreendidos por dois acontecimentos interligados e para eles imprevistos: o Holocausto e a criação do Estado de Israel.
O Holocausto não é abordado por Arlene Clemesha, cuja pesquisa vai até a Primeira Guerra Mundial.1 Mas ela anuncia que o fato será objeto de estudos posteriores, prometendo focalizá-los sob o prisma da possibilidade ou da impossibilidade de explicá-lo através da concepção de que a história é, basicamente, a história da luta de classes. Diante do que nos oferece neste livro, devemos esperar uma nova contribuição substanciosa para a compreensão dessa tragédia paradigmática do século XX.
Os marxistas sempre se opuseram ao sionismo e, até a Segunda Guerra Mundial, coincidiam com o sentimento da maioria dos judeus em todo o mundo. Os marxistas viam no sionismo uma ideologia nacionalista burguesa, consideravam inadmissível a ambição de criar um Estado judeu em território já secularmente habitado por uma população árabe e julgavam toda a proposta sionista como uma utopia por definição inviável. Não há dúvida de que foram surpreendidos pelo surgimento do Estado de Israel, em 1948, legitimado por uma decisão da ONU compartilhada pela União Soviética e pelos países socialistas do Leste Europeu. Uma vez que Israel constituiu, nas cinco décadas de sua existência, um foco de guerras e de constantes tensões no Oriente Médio, muitos marxistas continuam perplexos e desorientados ou mal orientados diante da jovem entidade política; a exemplo da grande maioria dos participantes da Conferência Tricontinental, realizada em 1967 em Havana, que aprovou uma resolução recomendando a extinção do Estado de Israel. Como se vê, quando se trata dos judeus, atua a propensão às soluções finais eliminacionistas. À direita e, às vezes, também à esquerda.
1998
Notas
A presente edição de Marxismo e judaísmo, além de completamente revista, amplia o escopo temporal do estudo até as vésperas da Segunda Guerra Mundial, incluindo um capítulo sobre os judeus nas brigadas internacionais da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e outro sobre as ideias de Leon Trótski (1879-1940) (nota do Blog da Boitempo).
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