Falhas de segurança e reclamações de moradores antecederam incêndio fatal em Hong Kong
Documentos revelam que contratada tinha histórico de violações e mesmo assim foi recomendada para reforma
247 - Um dos incêndios mais trágicos já registrados em Hong Kong foi precedido por uma série de falhas graves na contratação da empresa responsável pela reforma do conjunto habitacional Wang Fuk Court. Segundo informações divulgadas pela Reuters, moradores foram levados a acreditar que a construtora contratada possuía um histórico exemplar de segurança — algo que os documentos oficiais desmentem.
A consultoria Will Power Architects, contratada pela associação de proprietários para avaliar propostas de obra, assegurou aos moradores que a Prestige Construction & Engineering Co. não tinha registros de penalidades. Porém, documentos do Departamento do Trabalho mostram que a empresa foi multada mais de dez vezes nos sete anos anteriores por infrações como instalação inadequada de andaimes e falhas em conexões elétricas.
A apresentação usada pela consultoria afirmava que não havia processos contra a empresa, embora os registros revelem que as multas, aplicadas entre 2016 e 2019, estavam relacionadas ao descumprimento de normas de segurança industrial. A Prestige também havia sido sancionada pelo Departamento de Edificações por “negligência ou má conduta” em obras anteriores, sendo até impedida de atuar em determinados projetos por quatro meses.
A reconstrução do processo de contratação da Prestige — que venceu uma concorrência com 57 propostas e firmou um contrato de HK$ 330 milhões (US$ 42,4 milhões) — revela um clima crescente de desconfiança. Moradores relataram trabalhadores fumando na obra, uso de materiais inflamáveis no andaime e nas janelas e aumento expressivo dos custos. Alguns proprietários chegaram a iniciar um movimento para cancelar o contrato, mas a iniciativa não prosperou.
As razões pelas quais a consultoria afirmou que não havia registros de penalidades continuam desconhecidas. Will Power e Prestige não responderam às tentativas de contato da Reuters. Os documentos mostram, porém, que eventuais recursos já haviam sido analisados antes da divulgação das infrações.
A tragédia transformou o caso em investigação criminal. Após o incêndio de 26 de novembro, que deixou ao menos 159 mortos e se tornou o mais letal desde 1948, autoridades de Hong Kong abriram inquéritos por homicídio culposo e corrupção envolvendo a Prestige e a consultoria. Três responsáveis pela construtora e quatro integrantes da Will Power foram detidos, mas seus nomes não foram revelados, como é prática local.
A apuração aponta que parte da rede instalada no andaime não atendia às normas de segurança contra incêndio e que as placas de espuma usadas para proteger janelas eram altamente inflamáveis. O Departamento do Trabalho admitiu ter informado anteriormente aos moradores que o material do andaime era certificado, mas afirmou que isso não significava que os riscos foram ignorados. O Departamento de Edificações, por sua vez, disse ter enviado alertas às empresas em outubro e novembro para garantir o uso de materiais dentro das normas.
O Wang Fuk Court, construído nos anos 1980, abriga cerca de 2.000 apartamentos de proprietários majoritariamente idosos e trabalhadores. A legislação local exige que prédios com mais de 30 anos passem por reformas obrigatórias, o que motivou a seleção da empresa.
Os problemas se intensificaram em 2024, quando o custo total aprovado para a obra mais que dobrou em comparação ao valor apresentado na proposta. Em fevereiro, moradores reuniram assinaturas para substituir a diretoria da associação e tentar revogar o contrato da Prestige. A antiga administração contestou a validade das assinaturas e afirmou que uma assembleia extraordinária “desperdiçaria tempo e dinheiro”.
A reunião só ocorreu em 6 de setembro, em meio a um tufão, reunindo mais de 1.200 moradores até 23h. Ao final, uma nova diretoria foi eleita. Entretanto, o conselho, após consultar um advogado, concluiu que cancelar o contrato poderia tornar todos os proprietários legalmente responsáveis pelos impactos da decisão.
A nova gestão iniciou uma revisão completa da obra e mobilizou voluntários com experiência em construção para fiscalizar o canteiro. Em vídeo publicado no site da associação, o grupo declarou: “Haverá algum tipo de economia irresponsável? Alguma violação das diretrizes de segurança? Falta de acompanhamento? Não se preocupem — nossa equipe de supervisão estará vigilante.”
Mesmo assim, parte dos moradores decidiu agir por conta própria. Entre eles estava Wong, eletricista e encanador aposentado, retratado em uma fotografia amplamente divulgada que o mostra em desespero enquanto o edifício queimava com sua esposa presa no interior. Segundo seu filho, J. Wong, o pai removeu sozinho as placas inflamáveis das janelas e as substituiu por películas resistentes ao fogo. Também molhava diariamente a rede do andaime para tentar reduzir a inflamabilidade.
O filho relatou: “Apesar de conhecer os riscos, não importava o que ele fizesse, ele não conseguia mudar o que aconteceu.”
As investigações continuam, sem anúncios de denúncias formais até agora, enquanto Hong Kong tenta entender como uma obra destinada a reforçar a segurança acabou precedendo uma das maiores tragédias urbanas do território.


