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Oásis

Ponto de partida

Ao produzir para este primeiro nmero de Osis uma reportagem sobre o Marrocos, lembrei-me de um episdio na cidade de Marrakech, durante encontro com um comerciante de caftans. Ele me mandou para o osis de Fint, na beira do Saara. Foi l que aprendi algo fundamental para a minha vida: o valor sagrado do descanso.

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O descanso é tanto ou mais importante do que o trabalho. O tempo do descanso é sagrado, pois, como ensina a Bíblia, no sétimo dia até Deus descansou. O descanso, que os povos do deserto simbolizam na imagem do oásis, e que os hebreus chamam de sabá, é um tempo consagrado a Deus, para os que acreditam Nele. É um tempo consagrado a si mesmo, para os que não acreditam. Para todos, é o momento da introspecção e da reconciliação com nossa origem e destino.

A melhor lição sobre o significado do binômio trabalho/descanso quem me deu foi um comerciante marroquino que conheci na cidade de Marrakech. Na época, década de 70, a grande moda era usar roupas e adornos orientais, e eu ganhava a vida no estilo dos ciganos, viajando até países exóticos para comprar mercadorias que levava à Europa e revendia a lojas e butiques especializadas. Cheguei a Marrakech com um objetivo principal: comprar uma boa partida de um dos mais belos trajes femininos produzidos no Marrocos, o “caftan de Tetuan”. Trata-se de um camisolão de algodão branco com um refinado bordado em tons de vermelho vivo na altura do peito.

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No primeiro dia, andei pelo imenso bazar de Marrakech e nada encontrei. As pessoas me diziam: “Caftans de Tetuan, só na cidade de Tetuan.” Mas Tetuan fica no norte do Marrocos, a centenas de quilômetros de onde eu estava.

Na manhã seguinte, já um tanto preocupado, vasculhei uma outra área do mercado e então vi, finalmente, pendurado ao sol na porta de uma pequena loja, um magnífico exemplar do caftan de Tetuan. O proprietário, um marroquino de cara esperta, gordo e de meia-idade, informou ter um estoque de 40 peças no depósito e estar, obviamente, disposto a negociá-los. A partir daí, só posso descrever o que aconteceu se usar termos militares ligados a situações de batalha. O marroquino deu-me um preço inicial e eu reagi oferecendo um décimo do que ele pedira. De barganha em barganha, travamos uma luta que durou cinco longas horas e na qual ele e eu usamos todas as nossas estratégias e táticas buscando, cada um, “puxar a sardinha para o seu lado”. Por momentos a coisa ficou feia, e acredito até ter ouvido alguns sonoros (e para mim incompreensíveis) palavrões em árabe lançados na minha direção. Por duas vezes, irritado e impaciente, desisti e saí da loja. Mas ele foi atrás de mim, aos berros, na calçada e, puxando-me pela camisa, obrigou-me a entrar novamente e retomar a negociação. Dizia, em seu francês carregado de sotaque, não admitir a perda de tantas horas de trabalho sem chegar a uma conclusão. No final conseguimos um acordo, e fechei o negócio por um valor justo: exatamente a metade do preço pedido de início.

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Exausto, paguei a conta e pedi-lhe que entregasse a mercadoria no hotel. Já estendia a mão para um aperto de despedida quando o marroquino disse indignado: “Como? Você quer ir embora agora, depois de toda a batalha que travamos? De forma alguma. Chegou a hora do nosso descanso, e você é meu convidado para um lanche e um chá de hortelã.” Dito isso, trancou a porta da loja, explicando que não trabalharia mais naquele dia. Chamou um garoto, seu filho, dando-lhe algumas ordens. Levou-me para os fundos da loja e nos sentamos sobre almofadões coloridos dispostos sobre um grande tapete. Daí a pouco chegou o garoto trazendo chá de hortelã acompanhado de pequenos sanduíches de queijo e um prato de confeitos açucarados.

O marroquino era agora outra pessoa. A expressão do rosto tornara-se simpática e cordial, a voz suave, os gestos refinados e elegantes. Conversamos sobre uma porção de coisas e, num certo momento, ele olhou firme para mim e disse: Vous êtes un vrai arabe (Você é um verdadeiro árabe). E explicou: “Um árabe na alma. Os estrangeiros, europeus, americanos, não sabem negociar. Entram na minha loja, vêem uma coisa que lhes agrada e perguntam o preço. Quando digo quanto custa, ou compram logo, sem discutir, ou acham caro, dão as costas e vão embora. Mas você não. Você negociou como um verdadeiro árabe, como alguém que conhece o sentido secreto do negociar. Se não tivéssemos discutido e brigado, medido nossas forças, como faríamos para nos conhecer, para saber do que somos capazes? É por isso que agora eu e você podemos nos considerar amigos, porque antes soubemos eliminar nossas diferenças através do combate e chegar a um acordo que é bom para nós dois. É por isso que podemos conversar como se nos conhecêssemos há muitos anos.” E completou: “Como nos tornamos amigos através do combate, e vi que você gosta do combate, resolvi convidá-lo para o chá de hortelã. É com chá de hortelã que nós, marroquinos, celebramos algo que deve vir depois de qualquer combate, e que é ainda mais importante do que o combate: o descanso e a confraternização.”

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Encheu novamente minha xícara de chá e contou uma fascinante história ligada a seus antepassados, beduínos do deserto. Disse que o povo do deserto vive e labuta sobre as areias escaldantes, mas seu sonho permanente é chegar a um oásis para descansar e entregar-se ao devaneio. É no oásis que o beduíno encontra seus amigos, e se reencontra consigo mesmo e com Deus. Por isso, ele mesmo costumava referir-se a Deus, Alá, como “Oásis dos oásis”. Perguntou: “Você já esteve num oásis?” Ante minha resposta negativa, aconselhou: “Pois vá. Vá até a cidade de Ouarzazate, que fica no alto dos montes Atlas. Depois dela começa o Saara, e há por lá muitos oásis de fácil acesso. Penetre num deles, passe algumas horas meditando. Nos oásis há uma concentração de energias especiais. Quando estamos lá, quietos, em repouso e meditação, essas energias nos impregnam e se concentram dentro de nós. É como se elas criassem no nosso interior um outro oásis, uma réplica perfeita do oásis físico em que estamos. Esse oásis instalado em seu interior irá com você para onde você for. Quando sentir necessidade, bastará recolher-se e ativar na memória a imagem do oásis. Isso mobilizará as energias do oásis interno, e com a ajuda delas será fácil reconquistar a calma, a serenidade, a confiança em você mesmo e no sentido do seu destino.”

Anos depois pude seguir os conselhos do comerciante marroquino e comprovar a veracidade dos seus ensinamentos. Voltei ao Marrocos, desta vez numa viagem com objetivos jornalísticos. Fui a Ouarzazate e passei um dia inteiro na quietude do oásis de Fint, localizado a algumas dezenas de quilômetros daquela cidade.

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Fint situa-se no fundo de um vale árido, no sopé de uma maciça montanha de pedra avermelhada. A pista que leva até ele corta com coragem o deserto de areia e pedras, e já de longe a visão é impressionante: uma mancha de verde vivo destaca-se na imensidão feita de todos os matizes do amarelo, do ocre e do laranja. Uma fonte de água cristalina surge ao pé da montanha e forma uma espécie de piscina natural que sustenta toda a vida vegetal, animal e humana do oásis. Ao redor dessa piscina, e acompanhando o fio de água que dela sai até desaparecer no areal do deserto, milhares de tamareiras formam um grande bosque. As tamareiras, com suas copas de um verde único e seus cachos de frutos dourados, são as rainhas soberanas dos oásis do Saara. Outros arbustos, à moda de vassalos, ocupam os espaços que sobram.

Fint é habitado por algumas dezenas de famílias cujas casas simples concentram-se nas imediações da grande piscina. Vivem da exploração das tâmaras que ali, como em qualquer outro lugar do Marrocos, são consideradas o maná do deserto. Consegui numa dessas casas uma refeição leve, à base, é claro, de tâmaras, pão, queijo e... chá de hortelã. Depois, embrenhei-me na floresta de palmeiras em busca de um cantinho solitário onde pudesse me recostar. Encontrei o cantinho ideal, mas ele nada tinha de solitário. Pelo contrário, em toda parte a vida silvestre pululava. Observei a enorme variedade de pássaros, insetos, lagartos, rãs e sapos que vivem e tiram o seu sustento daquele microcosmo paradisíaco. Talvez devido ao extremo contraste que existe entre a secura e luminosidade do deserto e o frescor aconchegante à sombra das tamareiras, percebi que em raros outros lugares do mundo sentira aquela gratificante sensação de estar tão bem acolhido, protegido e aceito. Era como, de repente, voltar ao abrigo de um útero da natureza, onde tudo estava perfeitamente em ordem, paz e alegria.

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Os pequenos bichos com suas vozes, cantos e zumbidos, foram meus companheiros de algumas horas de repouso e meditação. Horas em que senti, pouco a pouco, as tais “energias especiais” impregnando meu corpo, meu coração, minha mente e minha memória sensorial. Até sentir que entre eu mesmo e aquele nicho de vida concentrada quase não havia mais diferenças.

Nos tempos que vieram a seguir pude constatar que a magia ensinada pelo comerciante de Marrakech realmente funciona. É lá, naquele núcleo de imagens e energias fixadas em meu interior, que vou buscar repouso e forças novas quando a liça das dificuldades cotidianas faz-se demasiado dura e desgastante. Ali, no meu oásis pessoal, construído segundo instruções de um vendedor de caftans que me ensinou o sentido da relação trabalho/descanso: duas coisas que devem existir de modo tão inseparável quanto a terra e o céu.

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