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Oásis

Que horas são?

A visão turva pelo choque com a luz, conjugada com alguma provável remela, constata: 7:28

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Acabo de acordar. Que horas são? A visão turva pelo choque com a luz, conjugada com alguma provável remela, constata: 7:28. Curioso, sempre que estou muito ansioso pra algo, meu relógio biológico antecipa o digital. No caso, eu queria acordar para arrumar uma desculpa para voltar a dormir. Olhando para o teto branco, não recebo nenhum empurrão para pular da cama. Eis que ele, o maior de meus vilões, surge disputando minha audição, competindo com os grunhidos da metrópole: o toque do despertador. Meu ódio por ele é tamanho que me tornei absolutamente incapaz de ouvir sua música em outra circunstância e não querer jogar o telefone no vaso e dar descarga. O despertador é como um servidor público: tá ali pra te ajudar, mas parece que faz meio de implicância.

Pé por pé, coloco-os no chão descalços e levanto. Olho na janela um tempo feio: as luzes de todos os barracos já acesas, poucas no condomínio. E o teto do mundo cinza, sem um pontinho azul, anunciando um dilúvio – ok, uma chuvinha, vai. Eu, que já não tô muito afim de ir para a reunião do trabalho, vejo em meio às nuvens um olho piscar, dizendo-me: - “Fica em casa, rapá. Cheio de sono aí... é mais negócio voltar a dormir”. Não acredito em ninguém que more no céu: estufo o peito, abro a geladeira, pego o doce que comprei pra Julya e como um pedaço, fingindo ser meu café da manhã. Já atrasado pela dúvida de voltar ou não para debaixo dos lençóis, tenho que tomar banho rápido. Por isso, peço licença que agora irei ao banheiro. Vai ser rápido: dez minutinhos. Quinze, quinze. No máximo, vinte.

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De banho tomado, camisa passada, torno à janela, porque tornou a chover. São apenas diminutas gotas d'água, mas elas querem que eu fique em casa – mentira, eu é que torço para que me forcem. Daí, então, faço um pacto comigo mesmo: - “Se continuar chovendo, não vai dar” - não sei ao certo o motivo de ter colocado aspas e travessão, eu não falei isso, apenas pensei. O fato é que deu: a chuva parou, a obrigação chamou e o fim do parágrafo rimou.

Caros leitores, antes que pensem tratar-se de vagabundagem, adianto: tenho um maldito aniversário (infaltável) de um bendito amigo. Depois, a tradicional política de boa vizinha com a família da minha namorada – aniversário de oito (talvez nove) anos de um priminho dela. Por isso, hoje, sexta-feira, acumulei o texto da minha formatura, algumas contas para pagar, um livro de um concurso pra ler, a sempre colocada de lado musculação e a crônica que vos apresento em todos os finais de semana.

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Olhemos pra mim de novo. À caminho do ponto de ônibus, a desgraça da chuva tá apertando e baldes d'água se travestem de pingos. Consolo de quem tá fudido, pensei que ficaria sexy, como todo galã de novela encharcado. Não, claro que não: mais pareço um desabrigado numa enchente. Pra piorar, o meu ônibus não passa. Porra, só falar – acabou de passar. Tem um corno parado no ponto tem dez minutos, impedindo os motoristas do busão de verem a gente dar o sinal. Ao menos, uma certeza fica: quanto mais espero, menos terei que esperar.

Cheguei na clínica. Mas é sempre essa merda: a reunião tá marcada pr'as oito e o mais caxias chega às oito e meia. Esperto chega às nove, malandro chega dez só pra não receber desconto no salário. Vou pra reunião. Mas tenho que pular essa parte. Sabe como é... ética profissional – mentira, preguiça mesmo.

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Deu tempo de voltar pra casa ainda no almoço. Ou seja, terei tempo pra fazer todas minhas tarefas de homem adulto que sou. Nada: em dois minutos, encostado no sofá, dormi. Aliás, estou dormindo. Pareço um anjinho, tá vendo?

Horas passam. Acordo. Como. Vou para a rua pagar a conta. Volto. Ligo a TV - nada de bom, pra variar. Deixo a musculação pra lá novamente. Leio Lévi-Strauss. Escrevo com muito custo o texto de formatura – que ficou bom até. O problema é que já não consigo mais olhar para a caixa de texto sem ficar com náusea. Apenas me deparo com a pressa dos ponteiros: são 21:41 e a verdade é que não vai dar tempo, simplesmente não vai. A gente tem que rever isso aí... vinte e quatro horas num dia só não dá pra fazer nada. Conclusão: eu vou ser demitido, sabia que isso acontecer. Como eu posso almejar ser escritor se não consigo me organizar? Julya sempre reclama disso. Sempre penso em fazer um quadro de horários ou agenda, mas teria de andar com um aviso pra lembrar de não esquecer de vê-los. A verdade nua e crua é que não vai dar. Chegou o meu fim precoce - praticamente uma morte no parto.

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Já um soldado desertor do dia de hoje, resolvo dormir mais cedo pra tentar escrever a crônica amanhã pela manhã, antes do churrasco. São 23:30 certinho. 23:31, mais precisamente. Como Julya já tá deitada, nada pode me atrapalhar. É só encostar a cabeça no travesseiro e dormir, simples assim.

Sono nenhum, impossível dormir. Já contei carneirinhos, lembrei da música que meu pai me ninava e até fiquei bocejando forçadamente na tentativa de me convencer de que quero dormir. Me perguntei, inclusive, se já não estava dormindo – mas acho que essa questão já é uma resposta. Tenho a impressão de que tô perdendo sono pelo sono que vou perder. Como obstáculo, o barulho ensurdecedor do silêncio. Nenhum ruído o interrompe. Sinto a presença de algum estranho, vulto, não sei. Cubro-me com minha capa de invisibilidade noturna: o lençol. Os pés estão de fora, ainda corro risco. Agora sim.

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Solução contra o silêncio: vou ligar o ventilador - ahá! Não, tá muito frio. Tsc! Já sei, já sei: vou ligar a televisão. Só não posso deixar alta, senão num durmo. Tiro o som – burro, aí não surte efeito, o silêncio continua vencedor. Opto por uma tática suja contra mim mesmo: vou pôr em um canal que eu não prestaria a mínima atenção. Na programação religiosa, só se fala de morte, sofrimento e sensação de impotência – mais parece a parte detrás dos maços de cigarro. Melhor tirar, isso é meio assustador. E, no zapear de meu controle, encontro aconchego. Algo que jamais seria capaz de me seduzir: o programa de venda de jóias. Então eu deito em berço esplêndido, à espera da eternidade com o prazo de oito horas recomendadas. Ledo engano: nada seria suficiente para convencer meu cérebro a apagar. Não vejo alternativa. Nada vem à mente.

Eis o insight: já que preciso fazer uma crônica leve, pois as últimas tiveram razoável densidade reflexiva, falarei exatamente sobre o nada. Pego o notebook, abro o Word e agora vai:

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Acabo de acordar. Que horas são?

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