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Wang Yiwei

Wang Yiwei é Professor Titular da Cátedra Jean Monnet, vice-presidente da Academia do Pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era da Universidade Renmin da China.

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A democracia não deve ser uma ferramenta para difundir a ideologia ocidental

Nenhuma nação tem o direito de impor seu modelo ao mundo, menos ainda de dividir o planeta entre “democracias” e “autocracias”

A democracia não deve ser uma ferramenta para difundir a ideologia ocidental (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

A ideia de que a democracia seria um valor universal, ou um “bem comum global”, tem sido afirmada repetidamente no Ocidente. Mas a questão central não é propriamente a democracia, e sim o sentido mais amplo da civilização humana. A narrativa democrática ocidental, historicamente, emprega dois artifícios: confunde democracia (enquanto forma de organização social) com sistema democrático (forma política específica) e confunde valores universais concretos com valores compartilhados da humanidade. Assim, construiu dois mitos: o de que o mundo antigo ocidental seria o berço da democracia e o de que o Ocidente moderno seria a sua fonte exclusiva. A partir daí, reivindica o monopólio do discurso democrático, erguendo uma dicotomia entre democracia e autoritarismo. O chamado Summit for Democracy, organizado pelos Estados Unidos, levou esse artifício ao extremo, ao tentar subverter o sistema das Nações Unidas, estruturado na igualdade soberana entre Estados.

Do ponto de vista teórico, muitos acadêmicos ocidentais descrevem o modelo democrático ocidental como se fosse a forma universal da democracia, insistindo em tratá-la como diversidade e não pluralidade. Para reencontrar o sentido original de democracia, é necessário compreender a democracia ocidental apenas como uma forma particular, deslocando o foco para sua diversidade civilizacional. Diferentes civilizações criaram concepções próprias de democracia, que convergem para aquilo que podemos chamar de democracia da humanidade, ou seja, valores compartilhados por todos os povos.

I. A democracia existe mesmo quando não tem origem ocidental

Livros-texto normalmente começam afirmando que “a democracia surgiu na Grécia Antiga”. Como a Grécia é vista como o berço da civilização ocidental, cristalizou-se a ideia de que democracia seria um patrimônio exclusivo do Ocidente. Mas por que a Grécia? O que ali existia era um sistema de polis, uma forma de democracia própria de cidades-Estado — uma experiência extremamente particular dentro da história humana.

Outro pilar da civilização ocidental é a tradição hebraica. Com o Edito de Milão, em 313 d.C., o Cristianismo institucionalizou-se e atribuiu à democracia um caráter universal sob o monoteísmo. O colonialismo europeu globalizou esse enquadramento, levando à afirmação de que a modernidade política nasceu no Ocidente. A universalização do modelo de Estado-nação, então, consolidou um humanismo ocidental baseado numa série de pactos: entre Deus e o rei; entre o rei e os aristocratas; entre aristocratas e governo; e entre governo e governados. Essa lógica dualista, centrada na separação entre esferas pública e privada, transbordou para a narrativa internacional que contrapõe democracia a autocracia.

No entanto, a maioria dos povos do mundo não nasceu sob a forma de cidades-Estado, e muitos sequer hoje são Estados-nação completos. Como esperar que tribos, confederações tribais ou emirados se reconheçam no modelo grego de polis? Ou que vejam o Ocidente moderno como origem da democracia?

A origem da democracia é, na verdade, múltipla.

  • A África preserva tradições como a “democracia sob as árvores” e o princípio Ubuntu — “eu sou porque nós somos”.
  • A América Latina possui formas pluralistas de democracia participativa.
  • O mundo árabe desenvolveu a Shura, forma islâmica de deliberação baseada na consulta. Sayyid Qutb e Abul A’la Maududi, entre outros pensadores, defendem que um Estado verdadeiramente islâmico deve adotar a Sharia como lei fundamental e praticar um sistema amplo de consulta, denominado “democracia islâmica”.

Ignorar essa diversidade e reduzir a democracia ao modelo ocidental, usando isso para legitimar o colonialismo, é uma distorção — e gera tragédias históricas. O próprio Ocidente sofre seus efeitos, como revela a ascensão do populismo. O Summit for Democracy apenas reforça visões fundamentalistas de democracia.

Ser “senhor de seu próprio país” é a essência democrática. Mas como um povo pode sê-lo se sua soberania é incompleta? John Mearsheimer classificou países como Japão e Coreia do Sul como “semi-soberanos”, incapazes de decidir autonomamente nem mesmo temas essenciais de segurança. Democracia pressupõe soberania plena — e é justamente essa soberania que a hegemonia dos EUA, baseada em capital e tecnologia, compromete. O caso da Polônia e a instrumentalização da participação de Taiwan no encontro estadunidense ilustram como Washington tenta desestruturar a ordem internacional fundada pela ONU, baseada em Estados soberanos.

Democracia, portanto, não é apenas pluralismo: é diversidade. Ela é parte da civilização política da humanidade, não um valor cristão universalizado. A democracia existe mesmo quando não é ocidental.

II. A democracia é parte da civilização política humana

A democracia é fruto da experiência civilizacional da humanidade. Não é instrumento de propaganda ideológica, tampouco patente ocidental. É um valor compartilhado entre povos, com raízes muito anteriores ao mundo moderno.

Nenhum país pode definir-se como “a” democracia e declarar os demais como não democráticos, nem tratar seu modelo como o ápice da história. Após a Segunda Guerra Mundial, a democracia ocidental acompanhou o declínio do colonialismo e a ascensão de novas hegemonias. A combinação entre liberalismo moderno e expansão monoteísta produziu desastres na política externa dos EUA.

Os principais desvios da democracia estadunidense manifestam-se em três grandes capturas:

1. A captura pelo dinheiro

A democracia moderna europeia nasceu da ideia de igualdade — igualdade perante Deus e perante a lei. Nos EUA, vinculou-se a liberdade individual, desligando-se da igualdade. Tornou-se uma democracia liberal que esconde desigualdades estruturais. Cidadãos deixam de ser sujeitos políticos e passam a ser votantes e contribuintes. A desigualdade de capital transforma a democracia num jogo dos ricos. Não por acaso, os EUA quase nunca discutem “democracia econômica”.

A globalização neoliberal aprofundou essa distorção, culminando na cena simbólica da invasão do Capitólio: a democracia contra ela mesma.

2. A captura pelas big techs

Democracia exige autonomia do indivíduo. Mas a democracia eleitoral e a economia digital dependem de grandes volumes de dados, enquanto o sistema educacional estadunidense aprofunda desigualdades. Tecnologia, quando guiada apenas pelo capital, sequestra a própria soberania estatal. A emergência do metaverso pode representar nova bolha tecnológica e financeira.

3. A captura pela fé

Tocqueville observou que as “maneiras” sustentavam mais a democracia americana do que as leis. Hoje, raça, etnia e imigração fragmentam o país. A antiga “grande fusão” já não existe. A pandemia de COVID-19 evidenciou esse colapso: a fé desmedida em tecnologia, vacinas e medicamentos — combinada à recusa em medidas coletivas — expôs a contradição entre liberdade individual e bem comum. A democracia torna-se, assim, governo para os fortes, ricos e influentes.

A democracia dos EUA já funcionou melhor no passado, mas isso não significa que continuará funcionando ou que funcionará em outros países. Nenhuma nação tem o direito de impor seu modelo ao mundo, menos ainda de dividir o planeta entre “democracias” e “autocracias”.

Como registra o documento “A Situação da Democracia nos Estados Unidos”, do Ministério das Relações Exteriores da China, o processo democrático estadunidense representou um avanço histórico, mas se degenerou com o tempo, afastando-se de seus princípios originais. Civilizações que não se renovam declinam — essa é uma lei histórica.

A democracia, portanto, pertence à humanidade, não ao Ocidente.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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