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Gustavo Guerreiro

Indigenista na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Pesquisador do Observatório das Nacionalidades, editor da Revista Tensões Mundiais. Doutor em Políticas Públicas. Especialista em questões militares. Diretor de Pesquisas do Cebrapaz (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz).

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A escala 6x1, eixo de uma nova hegemonia para a batalha de 2026

Para o governo Lula e para a construção de uma base de esquerda que não seja apenas um apêndice tático no Legislativo, essa é a oportunidade de ouro

Mobilização contra a escala 6x1 (Foto: Letycia Bond/Ag. Brasil)

O calendário político brasileiro, esse moinho que tritura reputações e esperanças com a mesma indiferença com que o mercado financeiro observa a oscilação do câmbio, já aponta para o horizonte de 2026. Não se trata apenas de uma disputa pela sucessão ou continuidade no Palácio do Planalto; trata-se, em última análise, de um plebiscito sobre a alma do projeto nacional. E, no centro desse furacão que se avizinha, um dado aparentemente setorial: a escala de trabalho 6x1. Esse tema emergiu da nova sociedade do cansaço (em alusão ao conceito de Byung-Chul Han) para se tornar o epicentro de uma batalha discursiva que pode, finalmente, oferecer ao campo progressista a chave para desatar o nó górdio da polarização.

O levantamento da Quaest, publicado neste crepúsculo de 2025 pelo jornal O Globo, é mais do que uma peça estatística; é um diagnóstico de exaustão civilizatória. Quando 57% dos eleitores autodeclarados bolsonaristas e 73% declarados “independentes” manifestam apoio ao fim da jornada de seis dias de trabalho por um de descanso, algo se quebrou no monólito ideológico que sustentou o bolsonarismo e suas derivações. O curto-circuito é evidente: a liderança conservadora, encastelada em um liberalismo de salão que flerta com o arcaísmo escravocrata, chama a medida de “comunista”. Enquanto isso, sua base eleitoral — o motorista de Uber que aspira a ser frota, a vendedora de cosméticos que sonha com a loja própria, o operário que se sente um “colaborador” — agoniza por exaustão.

Vivemos a era da “liberdade coercitiva”. Se antes o capitalismo operava pela negatividade do “tu deves”, hoje ele triunfa pela positividade do “nós podemos”. É a tragédia do Cisne Negro transposta para as periferias brasileiras: uma violência ideológica onde o carrasco e a vítima habitam o mesmo corpo. O trabalhador em escala 6x1, bombardeado por discursos de empreendedorismo de si, não se vê mais como um explorado (ele até detesta quando se fala em CLT), mas como um projeto em constante autossuperação. O problema é que essa busca pelo “desempenho total” não admite pausas. O colapso psíquico (ou burnout) não é um erro sistêmico, é o seu resultado final: a exaustão de quem, tal qual a personagem de Aronofsky, só consegue se realizar na autodestruição.

Para o governo Lula e para a construção de uma base de esquerda que não seja apenas um apêndice tático contra o “Centrão” no Legislativo, essa é a oportunidade de ouro. Mas, para agarrá-la, será preciso mais do que retórica sindical clássica. Será necessária uma transmutação da linguagem e uma coragem política que fure as bolhas de conforto.

A reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2026 é um objetivo que, embora central, não basta por si só. A experiência amarga desta legislatura, marcada por uma dependência quase parasitária das vontades de Arthur Lira e seus sucessores, e por um orçamento sequestrado pelo fisiologismo, ensinou que vencer o Executivo sem conquistar o Legislativo é governar sob uma espada permanente no pescoço. O desafio de 2026, portanto, reside na eleição de uma bancada robusta, orgânica e capaz de sustentar reformas estruturais sem o pedágio extorsivo das emendas de relator.

A exaustão física é um fenômeno capaz de romper o encanto do algoritmo. O eleitor que hoje rejeita o PT por questões morais ou religiosas é o mesmo que, amanhã, pode votar em um candidato de esquerda que lhe prometa o sábado livre para levar o filho ao parque ou para frequentar o culto sem o peso do cansaço crônico nas costas. A esquerda precisa entender que a disputa pela hegemonia em 2026 passará pela reconquista do território da vida concreta. É a análise concreta da realidade concreta, conceito central no marxismo, defendido por Lênin como a “alma viva” da teoria e da política.

A reação da direita parlamentar ao tema tem sido de uma miopia política constrangedora. Ao se agarrarem ao dogma da “competitividade” e do “custo Brasil”, esses parlamentares se descolaram de sua base. Segundo dados do TSE, o eleitorado que migrou para a direita na última década é composto massivamente por trabalhadores precários. Ao chamarem o fim da 6x1 de “devaneio econômico”, líderes como o senador Eduardo Girão (Novo-CE) e Julia Zanatta (PL-SC) assinam um atestado de distância da realidade das ruas.

É um erro estratégico que a esquerda não pode se dar ao luxo de ignorar. Os “influenciadores de finanças”, esses novos gurus da prosperidade que dominam o imaginário da nova classe média, encontram-se em um silêncio tático. Eles não conseguem explicar como o “mindset de milhardário” se sustenta em um corpo que não dorme o suficiente. O discurso da meritocracia esfarela-se diante da escala 6x1, pois fica evidente que não há mérito que compense a falta de tempo.

A direita moderna logrou êxito em atualizar a “servidão voluntária” de La Boétie para a era do algoritmo. Sob a máscara do “Você S/A”, o trabalhador da escala 6x1 é levado a acreditar que sua autoexploração é uma forma de liberdade. Superamos a alienação marxista clássica, onde o explorador era uma figura externa, para chegarmos a um estágio mais perverso: aquele em que o indivíduo se explora de boa vontade na fé de que está se “realizando”. O papel do campo progressista em 2026 é desmascarar essa falsa autonomia e mostrar que não há “empreendedorismo” possível em um corpo que sucumbe ao esgotamento.

Se há algo que a política nos ensinou, é que as palavras são campos de batalha. A direita sequestrou o conceito de “família” e o transformou em uma clava contra o progresso social. Em 2026, a esquerda tem a chance de realizar uma operação de retomada desse território.

Quem verdadeiramente defende a família? O deputado que vota contra o descanso semanal remunerado, condenando o pai à ausência crônica, ou o projeto político que garante que a mãe possa estar em casa no sábado para acompanhar o desenvolvimento dos filhos? A escala 6x1 é, talvez, a medida mais “antifamília” da nossa legislação trabalhista atual. Ela desestrutura o convívio, impede o lazer compartilhado e terceiriza a criação das crianças para a televisão ou para as ruas.

Ao adotar a pauta do “Tempo para a Família”, a esquerda desarma o discurso moralista da direita. Não é uma mudança de princípios, mas de estratégia comunicativa. Precisamos falar mais em “direito ao descanso e à dignidade familiar”. É assim que se constrói uma ampla base que inclua o evangélico, o conservador em costumes, mas que é, acima de tudo, um trabalhador explorado.

A batalha de 2026 não será vencida apenas nos estúdios de TV em São Paulo ou nos algoritmos de redes sociais, mas nos grotões e nas periferias das metrópoles, onde a escala 6x1 é a regra e não a exceção. Para eleger uma base legislativa de esquerda, é preciso que os candidatos a Deputado Federal e Estadual e Senadores se tornem os embaixadores dessa mudança.

O governo Lula tem sido criticado, por vezes com razão, por uma certa timidez na pauta das reformas estruturais em virtude da correlação de forças no Congresso. Mas a correlação de forças não é um dado da natureza; ela é construída na disputa de opinião pública. Se a proposta de fim da 6x1 se tornar o clamor das ruas, o Centrão, que é pragmático e teme as urnas, será forçado a ceder. A ampla base que Lula tanto busca para governar em um eventual segundo mandato consecutivo começa a ser gestada agora, na defesa do tempo do trabalhador.

Uma população exausta é uma população suscetível a soluções autoritárias e messiânicas. O salvador da pátria encontra terreno fértil no desespero de quem não tem tempo para pensar. Ao oferecer a redução da jornada, a esquerda oferece mais do que descanso; oferece a possibilidade da cidadania. Só quem tem tempo pode se informar, pode participar da comunidade, pode, enfim, exercer a democracia. O fim da 6x1 é, portanto, uma medida de salvaguarda democrática.

A disputa de 2026 será, sem dúvida, a mais difícil da nossa história recente. A escala 6x1 é o mote perfeito porque ela é transversal. Ela atinge o jovem que ingressa no mercado de trabalho e o veterano que não aguenta mais a pressão. Ela unifica o trabalhador do setor de serviços e o da indústria. Ela coloca a esquerda no lado certo da história: o lado da vida.

Se a esquerda conseguir transformar essa demanda em um movimento nacional, a eleição de 2026 não será apenas uma vitória eleitoral; será uma vitória cultural. Será o momento em que o Brasil decidirá que seus cidadãos não são máquinas de produzir lucro, mas seres humanos com direito ao sábado de sol, ao domingo de paz e a um futuro onde o despertador não seja o sinal de uma sentença de prisão diária.

A provocação final que deixo é: a direita alardeia que o fim da 6x1 “quebrará o país”, mas silencia sobre o fato de que a permanência dessa escala já quebrou a nossa gente. Enquanto eles defendem a estupidez da mecânica produtiva, nós devemos questionar: de que serve uma economia que cresce sobre o cadáver psíquico de seus trabalhadores? Se o tempo é o tecido da existência, quem nos rouba o sábado nos rouba a humanidade. A resposta a esse sequestro temporal é o mapa da mina: quem tiver a coragem de oferecer a potência do repouso contra a futilidade da agitação frenética herdará os votos de um povo que, exausto de ser “empresário de si mesmo”, decidiu que quer, enfim, voltar a pertencer a si mesmo para poder sonhar um Brasil diferente.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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