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João Scarpanti

Jornalista independente, fotógrafo e graduando em História pela UNESP Franca

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A guerra imperialista contra a Venezuela e a paralítica esquerda nacional

Sob declaração de guerra de agressão do imperialismo norte-americano, a Venezuela enfrenta um novo cerco. No Brasil, a esquerda assiste em silêncio

Membros da Guarda Nacional da Venezuela - 26/10/2025 (Foto: REUTERS/Isaac Urrutia)

O anúncio feito por Donald Trump nesta terça-feira, dia 16, de que os Estados Unidos passarão a bloquear todos os chamados “petroleiros sancionados” que entrem ou saiam da Venezuela marca uma nova etapa da ofensiva imperialista contra o país. Não se trata de retórica inflamada nem de mais um gesto diplomático hostil, mas de uma ação direta contra a principal fonte de sustentação da economia venezuelana: a exportação de petróleo. O cerco se fecha pelo mar, se somando ao flanco da Venezuela ameaçado por Essequibo ocupada e as bases militares ianques que lá estão, agora Washington dobra a aposta no estrangulamento econômico como método clássico de guerra política.

A medida foi divulgada após uma escalada militar evidente na região. Na semana anterior, forças norte-americanas apreenderam um petroleiro na costa venezuelana, em meio ao aumento da presença naval dos EUA no Caribe. Paralelamente, multiplicaram-se ataques contra embarcações tanto no Caribe quanto no Pacífico, operações que o governo norte-americano tenta justificar sob o pretexto do combate ao narcotráfico. O saldo, segundo informações divulgadas, é de ao menos 95 mortos em 25 ações contra barcos, uma estatística que desmonta qualquer narrativa humanitária ou policialesca.

Em publicação nas redes sociais, Trump escancarou o verdadeiro conteúdo político da operação. Acusou a Venezuela de financiar o narcotráfico com recursos do petróleo e afirmou que manterá o reforço militar. Chegou a declarar que o país estaria “completamente cercado pela maior armada já reunida na história da América do Sul” e ameaçou ampliar o cerco “até que devolvam aos Estados Unidos da América todo o petróleo, terras e outros bens que nos roubaram”. A linguagem é menos a de um chefe de Estado e mais a de um administrador colonial reivindicando aquilo que considera sua propriedade natural.

Mesmo diante das críticas de parlamentares norte-americanos de ambos os partidos, o governo dos Estados Unidos insiste em classificar as operações como “bem-sucedidas”. O discurso oficial sustenta que a ofensiva impediria a chegada de drogas à costa dos EUA, enquanto silencia sobre os mortos, sobre a violação da soberania de um país estrangeiro e sobre o caráter abertamente predatório da iniciativa. A hipocrisia é tamanha que o próprio Trump passou a tratar o governo venezuelano como uma “organização terrorista estrangeira”, criando a moldura jurídica necessária para qualquer tipo de agressão futura.

Essa linha foi reforçada por declarações da chefe de gabinete da Casa Branca, Susie Wiles, em entrevista publicada também nesta terça-feira, dia 16. Segundo o relato, Wiles afirmou que Trump “quer continuar afundando navios até que Maduro se renda”. A frase dispensa interpretações: trata-se de uma política de força bruta voltada a derrubar o governo venezuelano e abrir caminho para a apropriação direta de suas riquezas naturais. Não por acaso, a Venezuela concentra as maiores reservas comprovadas de petróleo do mundo e produz cerca de um milhão de barris por dia, um dado estratégico demais para ser ignorado pelo imperialismo em crise.

Ainda no dia 16, o governo venezuelano respondeu com um comunicado oficial no qual denunciou a medida como uma grave violação do Direito Internacional e uma pretensão colonialista explícita. O texto afirma que Trump, ao violar princípios como o livre comércio e a livre navegabilidade, lançou uma ameaça temerária contra a República Bolivariana da Venezuela. Denuncia também a naturalidade com que o presidente norte-americano se refere ao petróleo, às terras e às riquezas minerais venezuelanas como se fossem propriedade dos Estados Unidos, exigindo sua entrega imediata.

No comunicado, Caracas sustenta que Washington pretende impor de forma absolutamente irracional um bloqueio militar naval com o objetivo de roubar riquezas que pertencem ao povo venezuelano. Em resposta, o governo reafirma sua soberania sobre os recursos naturais e seu direito à livre navegação no Mar do Caribe e nos oceanos do mundo. Amparada na Carta da ONU, a Venezuela anunciou que fará uma denúncia formal na Organização das Nações Unidas, qualificando a ação norte-americana como uma ameaça belicista de caráter colonial.

O governo venezuelano também fez um apelo direto aos povos do mundo e à população dos Estados Unidos para que rejeitem a escalada militar. No texto, cita literalmente a frase de Trump sobre “devolver aos EUA todo o petróleo, terra e outros ativos”, classificando-a como expressão inequívoca de uma política intervencionista e predatória. Ao final, reafirma que a Venezuela jamais voltará a ser colônia de império algum e que seguirá defendendo sua independência e soberania junto ao seu povo, evocando a tradição histórica de resistência simbolizada por Simón Bolívar.

Diante desse cenário, o que salta aos olhos não é apenas a brutalidade da ofensiva imperialista, mas a imobilidade constrangedora da esquerda nacional e de governos que se dizem progressistas. Enquanto Washington anuncia bloqueios, apreensões e ameaças militares abertas, reina o silêncio cúmplice, a nota protocolar ou a espera passiva por alguma mediação institucional que nunca vem. A defesa da Venezuela deveria ser uma prioridade política internacional, uma campanha ativa de mobilização contra o cerco imperialista. Em vez disso, o que se vê é a capitulação diante da agressão e a adaptação resignada a um mundo onde o imperialismo já nem se dá ao trabalho de disfarçar seus objetivos.

A ofensiva em curso contra a Venezuela deve ser analisada a partir da lógica real do imperialismo em crise, e não a partir das ilusões propagadas por setores que insistem em anunciar uma transição pacífica da ordem mundial. O imperialismo norte-americano não recuou, nem poderia fazê-lo. Ao contrário, reage à crise estrutural do capitalismo com uma escalada de agressividade sem precedentes. As promessas eleitorais de encerrar guerras externas revelaram-se irrelevantes diante das necessidades objetivas do capital. Quando a dominação é ameaçada, o imperialismo abandona o verniz democrático e recorre abertamente à força.

Essa agressividade não surge do nada. O imperialismo vem acumulando derrotas políticas e militares importantes. A retirada desastrosa do Afeganistão expôs os limites de sua capacidade de controle direto. A guerra no Leste Europeu colocou em xeque a ordem imposta pela OTAN. A resistência palestina, mesmo cercada e submetida a um massacre permanente, demonstrou que uma força irregular pode desafiar um dos exércitos mais bem armados do mundo, sustentado por todo o aparato imperialista. Esses episódios expressam uma crise inegável. Não se trata de um rearranjo civilizado do poder mundial, mas de uma crise profunda do próprio sistema imperialista.

É justamente por isso que a tese da chamada “ordem multipolar” funciona como uma mistificação perigosa. A perda relativa de hegemonia não produz moderação, mas violência. O imperialismo não se dissolve, se radicaliza. O que se vê na Palestina é a demonstração concreta do grau de selvageria que o sistema é capaz de mobilizar para preservar sua dominação. A tendência não é a pacificação, mas o acirramento da luta. Esse dado é decisivo para compreender a situação na América do Sul e, em particular, o papel da Venezuela.

A Venezuela ocupa um lugar estratégico porque foi o ponto mais avançado das mobilizações revolucionárias que atravessaram a América Latina nas primeiras décadas deste século. A desestruturação do antigo exército reacionário e a constituição de forças armadas com caráter nacional romperam, ainda que parcialmente, o controle direto do imperialismo. Estabeleceu-se um regime que, dentro de seus limites e contradições, não se subordina automaticamente aos interesses de Washington. Para o imperialismo, isso é inaceitável.

O problema venezuelano não é apenas estatal ou diplomático. O que está em jogo é a mobilização popular. O imperialismo compreende que os conflitos atuais não ameaçam apenas sua supremacia militar ou econômica, mas abrem a possibilidade de processos revolucionários. A experiência palestina evidencia isso de forma brutal. Não se trata de uma guerra entre Estados, mas de um processo de resistência popular que escapa aos canais tradicionais de controle. É essa dinâmica que o imperialismo teme e que se prepara para enfrentar com violência extrema. Para ele, trata-se de uma questão de vida ou morte.

Nesse sentido, a ofensiva contra a Venezuela integra uma estratégia mais ampla de disciplinamento do continente americano. Golpes de Estado, intervenções institucionais e sabotagens econômicas já foram amplamente utilizados. Agora, vemos a etapa mais violenta. A Venezuela é um obstáculo central porque reúne condições que dificultam um golpe clássico: instituições moldadas por um processo de mobilização popular, alianças internacionais fora do eixo imperialista e uma base social politizada. Além disso, trata-se de um país rico, com as maiores reservas de petróleo do mundo, algo que o imperialismo jamais tolerou fora de seu controle direto.

Essa ofensiva não é acidental nem fruto de impulsos individuais. Ela expressa o funcionamento normal do imperialismo em uma etapa de crise aguda. O aparato de Estado norte-americano atua de forma relativamente autônoma em relação às promessas eleitorais, porque responde às necessidades do capital. Por isso, o cerco à Venezuela não pode ser tratado como exceção, mas como parte de um processo geral de intensificação da luta entre o imperialismo e os povos oprimidos. Trump foi eleito com a promessa do fim da guerra, e o que vemos é a expansão do morticínio em escala.

As ilusões democráticas de amplos setores da esquerda tornam-se um fator de desarme político. Não há saída institucional capaz de conter uma ofensiva dessa natureza. O enfrentamento não depende apenas de governos, mas fundamentalmente da mobilização popular. A correlação de forças se constrói na luta, não nos gabinetes. Onde há passividade, o imperialismo avança; onde há resistência organizada, ele encontra limites.

No Brasil, essa contradição se expressa de forma aguda. A extrema direita mantém uma base social significativa, alimentada por uma propaganda sistemática contra a Venezuela e contra qualquer projeto minimamente soberano. Ao mesmo tempo, setores da burguesia liberal compartilham do mesmo alinhamento imperialista, ainda que com linguagem mais polida. Enfrentar essa coalizão exige luta política aberta, disputa ideológica e mobilização das massas. Nenhuma medida judicial substituirá esse processo.

A defesa da Venezuela, portanto, não é uma questão externa ou secundária. Ela é parte da luta de classes no próprio Brasil. Trata-se de uma tarefa internacionalista e, ao mesmo tempo, nacional. Enquanto o povo venezuelano enfrenta o cerco com mobilização concreta, aqui a arma central é a palavra organizada, a agitação política e a construção consciente de um movimento de massas capaz de romper a apatia e a despolitização.

A luta anti-imperialista não é algo distinto da luta da classe trabalhadora contra a burguesia. O imperialismo é a forma superior da dominação burguesa em escala mundial. A burguesia brasileira, longe de ser uma força autônoma, atua como sócia menor desse sistema. Combater o imperialismo é combater a burguesia. Separar essas dimensões significa cair na confusão teórica e política e acabar a reboque de alguma fração do próprio inimigo.

A crise atual é, em última instância, a crise do capitalismo. Ela abre uma etapa de confronto intenso entre revolução e contrarrevolução. Nada está garantido, mas tampouco tudo está perdido. A resistência dos povos demonstra que o imperialismo pode ser enfrentado. A defesa incondicional da Venezuela é parte central dessa batalha. Transformá-la em campanha permanente, ampla e politizada não é uma opção moral, mas uma obrigação política diante da história.

A disputa em torno do Essequibo, por exemplo, recolocou a Venezuela no centro do conflito entre os povos oprimidos e o imperialismo. O governo Maduro, pressionado por um cerco econômico prolongado e por ameaças militares diretas, optou por uma iniciativa política que combina institucionalidade burguesa, mobilização popular e enfrentamento direto aos interesses das grandes petroleiras e de seus Estados protetores. Trata-se de um movimento que não pode ser lido como gestos isolados, mas como parte da dinâmica concreta da luta de classes.

O primeiro passo desse avanço foi dado em 21 de setembro de 2023, quando a Assembleia Nacional da Venezuela aprovou por unanimidade a convocação de um referendo consultivo sobre a Guiana Essequiba. A decisão amparou-se no artigo 71 da Constituição venezuelana, que autoriza tanto o Executivo quanto o Legislativo a convocarem consultas populares. O dado político central não é apenas a legalidade formal da medida, mas o fato de que o regime decidiu apelar diretamente ao povo para legitimar uma ação que confronta interesses imperialistas diretos na região.

No dia 23 de outubro de 2023, o Conselho Nacional Eleitoral aprovou, também por unanimidade, as cinco perguntas que comporiam o referendo. O anúncio foi feito pelo presidente do CNE, Elvis Amoroso, e imediatamente celebrado por Nicolás Maduro em suas redes sociais, convocando a população a votar cinco vezes “Sim” no plebiscito marcado para 3 de dezembro (@NicolasMaduro, X, 23/10/2023). A formulação das perguntas revelou o eixo político da consulta: rejeição ao Laudo Arbitral de Paris de 1899, defesa do Acordo de Genebra de 1966 como único instrumento válido para resolver a controvérsia, recusa da jurisdição da Corte Internacional de Justiça (CIJ), oposição à exploração unilateral das áreas marítimas disputadas e criação do Estado da Guiana Essequiba como parte integrante do território venezuelano (CNE aprueba por unanimidad cinco preguntas para referendo consultivo, Asamblea Nacional de Venezuela, 23/10/2023). O referendo aprovou massivamente, em dezembro de 2023, com 95,93% dos votos, a reanexação de Essequibo.

Ao atacar frontalmente a CIJ, sediada em Haia, Maduro denunciou o que chamou de “colonialismo judicial”, deixando claro que a disputa não se limita a um conflito jurídico entre Estados, mas envolve diretamente o aparato institucional do imperialismo. A reação do governo venezuelano veio após a Guiana recorrer à Corte para tentar suspender o referendo, numa manobra articulada com interesses empresariais e geopolíticos externos (Venezuela não aceitará ‘colonialismo judicial’ de Haia sobre Essequibo, diz Maduro, Sputnik, 30/11/2023). A crítica de Maduro foi direta: a justiça internacional funciona, nesse caso, como instrumento de legitimação da pilhagem imperialista.

O discurso de unidade nacional e soberania convocado pelo presidente venezuelano busca neutralizar divisões internas diante de uma ameaça externa concreta. Ao apelar para a suspensão temporária de disputas partidárias em nome da defesa territorial, na época, Maduro procurou construir uma base social mais ampla para sustentar o conflito. Ao mesmo tempo, denunciou explicitamente o papel da ExxonMobil, apontando a petrolífera norte-americana como força dirigente por trás das ações do governo guianês. A associação entre Estado dependente e capital monopolista aparece aqui de forma cristalina: a Guiana atua como correia de transmissão dos interesses do imperialismo norte-americano.

A campanha “O sol da Venezuela nasce no Essequibo” deu materialidade a essa orientação política. O governo lançou uma ampla mobilização de massas, com atos públicos, eventos culturais, visitas a comunidades e propaganda sistemática nas redes sociais, transformando o referendo em um processo de agitação política em escala nacional (Gazeta do Povo, 30/11/2023). Paralelamente, foi colocada em marcha uma operação estatal para facilitar a emissão de documentos de identidade, condição necessária para o voto. Mais de cem postos do Saime foram abertos em todo o país, e o próprio governo autorizou o uso de documentos vencidos, explicitando o esforço para ampliar a participação popular (Gazeta do Povo, 29/11/2023).

Esse movimento não ocorreu no vazio. O território disputado é estratégico não apenas do ponto de vista geopolítico, mas sobretudo econômico. A Guiana entregou a exploração de seu petróleo a um consórcio de empresas imperialistas, entre elas ExxonMobil, TotalEnergies e outras corporações associadas ao capital financeiro internacional. A reivindicação venezuelana do Acordo de Genebra de 1966 funciona, nesse contexto, como instrumento jurídico-político para questionar a legalidade dessa espoliação e recolocar a disputa em termos de soberania nacional.

Ainda que uma guerra aberta não esteja colocada de forma imediata, o referendo cumpre uma função preparatória evidente. O governo Maduro apostou na mobilização popular como elemento de dissuasão e como base de legitimidade para ações futuras mais duras. O fato de um país sitiado, sob sanções e pressão permanente, avançar sobre uma disputa territorial dessa magnitude indica que o imperialismo é percebido como enfraquecido. Essa leitura não surge do nada: ela se alimenta das crises militares, políticas e econômicas que corroem a hegemonia norte-americana.

No plano regional, a reação foi reveladora. Com exceção de governos diretamente alinhados a Washington, não se formou uma frente latino-americana sólida contra a Venezuela. O Brasil, potência central do subcontinente, optou por uma postura de neutralidade passiva, defendendo uma “solução diplomática e pacífica”. Em 22 de novembro de 2023, autoridades venezuelanas e guianesas foram recebidas em Brasília pelo chanceler Mauro Vieira, em um encontro que buscou administrar a crise sem enfrentar suas causas estruturais (Brasil de Fato, 23/11/2023).

Durante a cúpula, o chanceler venezuelano Yván Gil denunciou publicamente a presença militar dos Estados Unidos na Guiana e os planos de instalação de bases estrangeiras no território em disputa. Ao apontar a atuação do Comando Sul e a incorporação de atores externos na controvérsia, Gil deixou claro que não se trata de um litígio bilateral, mas de uma operação imperialista clássica de cerco e intimidação.

Durante tudo isso, a defesa da Venezuela não foi transformada em campanha prioritária, nem em eixo de mobilização internacional. Predomina a lógica da diplomacia inofensiva, do apelo abstrato à legalidade e da recusa em enfrentar o imperialismo no terreno concreto da luta política, a mesma que observamos perante a declaração de guerra por parte de Trump contra a Venezuela.

A campanha venezuelana em torno do Essequibo expos, assim, uma contradição central do período. De um lado, um governo que, com todos os seus limites, recorre à mobilização popular para enfrentar interesses imperialistas diretos. De outro, uma esquerda regional paralisada, incapaz de transformar esse conflito em bandeira internacionalista. Em um momento de intensificação da crise do capitalismo e de brutalização do imperialismo, a neutralidade não é prudência: é cumplicidade objetiva. A defesa da Venezuela não é uma questão periférica, mas uma tarefa central da luta anti-imperialista no continente.

A intensificação da presença militar dos Estados Unidos na Guiana revelou, sem rodeios, o verdadeiro conteúdo do conflito em torno do Essequibo. O deslocamento de forças militares norte-americanas para o país vizinho, articulado com o avanço das grandes petroleiras, transforma a Guiana em plataforma de intervenção contra a Venezuela e, mais amplamente, contra toda a região.

Esse movimento ganhou forma pública no início de novembro de 2023, quando a nova embaixadora dos EUA na Guiana, Nicole Theriot, anunciou a intenção de aprofundar a cooperação bilateral em defesa e segurança. A declaração não foi um gesto protocolar, mas parte de uma política deliberada de militarização do conflito. Ao falar em “ameaças transversais” e “segurança regional”, a diplomata norte-americana deixou explícito que Washington enxerga o Essequibo como zona estratégica sob sua tutela direta, sobretudo para garantir os interesses das empresas energéticas estadunidenses. A reação venezuelana foi imediata: Caracas denunciou o aumento da presença militar como uma manobra destinada a proteger o saque imperialista dos recursos naturais da região.

Desde 2015, com a descoberta de gigantescas reservas de petróleo offshore, a Guiana converteu-se em enclave privilegiado da ExxonMobil, que opera campos estimados em cerca de 11 bilhões de barris. Grande parte dessas plataformas está localizada na costa do território disputado, o que explica o empenho dos Estados Unidos em bloquear qualquer iniciativa venezuelana que questione essa exploração. A militarização não surge como resposta a uma suposta ameaça venezuelana, mas como condição necessária para assegurar a continuidade da pilhagem imperialista.

A presença militar dos EUA foi formalizada no início de setembro de 2023, onde a embaixada norte-americana anunciou a chegada de uma unidade das Brigadas de Assistência de Forças de Segurança, subordinadas diretamente ao Exército dos Estados Unidos. Sob o pretexto de exercícios conjuntos e planejamento estratégico, Washington passou a atuar na formação, no treinamento e na coordenação das forças armadas guianesas. Trata-se de um padrão clássico da política imperialista: subordinar militarmente países dependentes, transformando-os em peças do seu dispositivo de dominação regional.

Esse processo foi reforçado por visitas de alto nível do aparato militar norte-americano. A comandante do Comando Sul, general Laura Richardson, esteve na Guiana para discutir parcerias de defesa não apenas com o governo local, mas também com a Caricom, ampliando o raio de influência dos EUA no Caribe. Exercícios multinacionais como o Tradewinds cumprem exatamente essa função: integrar forças armadas nacionais sob comando e doutrina imperialistas, preparando o terreno para operações futuras.

No plano político, o governo guianês passou a adotar um discurso cada vez mais beligerante, declarando esgotadas as vias de negociação e prometendo “resistir” às reivindicações venezuelanas, sempre com o respaldo explícito da OEA e da Caricom. Essa postura não expressa força própria, mas dependência estrutural. Como denunciou Maduro, o presidente da Guiana atua como fantoche da ExxonMobil e do Comando Sul, autorizando perfurações em águas ainda não delimitadas e incorporando a lógica militarista do imperialismo.

A denúncia feita pela Venezuela na Assembleia Geral da ONU no mesmo período escancarou esse quadro. Ao afirmar que os EUA buscam instalar uma base militar no território disputado, Caracas expôs a tentativa de transformar o Essequibo em ponta de lança de uma agressão mais ampla, destinada a controlar recursos energéticos estratégicos e cercar um regime que mantém, ainda que de forma contraditória, certa margem de independência frente ao imperialismo.

A questão do Essequibo, portanto, não pode ser reduzida a um litígio jurídico ou a uma disputa diplomática. Trata-se de uma questão de soberania nacional em um contexto de crise profunda do capitalismo mundial. O imperialismo recorre a instrumentos como o Laudo Arbitral de Paris de 1899 e à Corte Internacional de Justiça para legitimar a expropriação de territórios ricos em recursos naturais, especialmente em um momento em que a guerra na Ucrânia, os embargos à Rússia e a crise energética europeia aumentam a pressão por novas fontes de petróleo e gás.

As fronteiras atuais da Venezuela são produto direto da violência colonial britânica do século XIX, quando a Grã-Bretanha anexou vastas áreas a oeste do rio Essequibo, explorando a desigualdade militar existente à época. O território, com cerca de 160 mil quilômetros quadrados e uma população relativamente pequena, segue sendo tratado como reserva estratégica do capital imperialista. Hoje, a ocupação não se dá apenas por meio de empresas como a ExxonMobil, mas também pela instalação de estruturas militares norte-americanas que ameaçam não apenas a Venezuela, mas também a soberania de países vizinhos, inclusive o Brasil, ao ampliar a espionagem e o controle sobre a região amazônica.

Diante desse quadro, a convocação do referendo não é um gesto simbólico, mas uma decisão política de grande alcance. Ao submeter a questão ao voto popular, o governo venezuelano legitima sua posição frente à CIJ, rejeita o Laudo de Paris, reafirma o Acordo de Genebra e avançar na proposta de criação do Estado da Guiana-Essequiba. Mais do que um expediente jurídico, tratou-se de uma mobilização consciente dos trabalhadores e do povo em defesa da soberania nacional.

O referendo consolidou uma vitória expressiva do governo Maduro, justamente porque toca em uma questão sensível para as massas: a defesa do território e dos recursos nacionais contra a espoliação imperialista. No atual período de acirramento da luta entre imperialismo e povos oprimidos, a batalha do Essequibo assumiu um significado que ultrapassa as fronteiras venezuelanas. Ela se inseriu no confronto geral entre a crise do capitalismo e a resistência dos povos.

A Venezuela é um país dotado de enormes riquezas naturais. Possui uma das maiores reservas de petróleo do planeta e, portanto, reúne condições objetivas para um desenvolvimento econômico e social de grande envergadura. Ainda assim, ao longo de todo o século XX, esse potencial foi sistematicamente bloqueado. O imperialismo norte-americano, em aliança com uma burguesia local historicamente parasitária, manteve o país aprisionado a uma estrutura econômica dependente, sem qualquer projeto de soberania nacional. Trata-se de uma classe dominante submissa aos interesses estrangeiros, incapaz de investir no próprio país e absolutamente comprometida com a manutenção de uma economia monoexportadora de petróleo, vigente desde os anos 1920.

É nesse terreno que emerge a Revolução Bolivariana. A partir da liderança de Hugo Chávez, especialmente após a derrota da tentativa de golpe apoiada pelos Estados Unidos, o Estado venezuelano passou a enfrentar frontalmente a dominação imperialista. A estatização da exploração do petróleo, a reorganização do papel do Estado na economia e a criação de mecanismos de redistribuição de renda expressaram uma ruptura concreta com o velho regime. A Constituição de 1999 consolidou esse processo ao instituir um novo regime político, baseado na participação popular e na promessa de um socialismo do século XXI, ainda que marcado por contradições e limites próprios de um país capitalista dependente.

Desde então, esse regime tornou-se alvo permanente de uma campanha de deslegitimação e criminalização, tanto interna quanto internacional. O objetivo é claro: destruir a experiência bolivariana para recolocar a Venezuela sob tutela direta do imperialismo estadunidense e restaurar o poder da burguesia compradora. Essa ofensiva não é episódica, mas estrutural. A mesma classe que nunca promoveu qualquer transformação produtiva no país, nem rompeu com a dependência petrolífera, apresenta-se agora como alternativa “democrática”, apoiada por uma poderosa máquina midiática e política.

Em 2024, com a realização de eleições gerais e a candidatura de Nicolás Maduro à reeleição, que teve como desfecho sua recondução ao governo, esse movimento ganhou novo impulso. As forças do atraso voltam a se organizar com o objetivo declarado de produzir instabilidade, provocar o caos social e abrir caminho para mais uma operação de mudança de regime, nos moldes das chamadas revoluções coloridas. A ofensiva ideológica, derrotada pelo governo Maduro, garantiu o desenvolvimento contínuo do país.

Desde as eleições presidenciais de 2024, a conduta do governo brasileiro tem sido marcada por vacilações e concessões inaceitáveis. Ao recusar-se a reconhecer o resultado eleitoral e ao exigir a divulgação das atas, o Planalto passou a operar dentro do mesmo enquadramento narrativo construído pelo imperialismo e pela oposição golpista. Mesmo após o PSUV apresentar as atas à autoridade eleitoral venezuelana, o governo brasileiro manteve sua posição, evidenciando que, nesse terreno, atua a reboque dos interesses imperialistas, e não a partir de uma política externa soberana.

Esse comportamento não é apenas um erro diplomático; é um erro estratégico. Revela a incapacidade do governo Lula de compreender que a ofensiva contra a Venezuela não é um episódio isolado, mas parte de uma política sistemática de cerco e intervenção do imperialismo norte-americano na América Latina. Ao relativizar essa ofensiva, o Brasil enfraquece não apenas a Venezuela, mas a si próprio, contribuindo para normalizar a presença militar e política dos Estados Unidos no continente.

Lula deveria ter aprendido com Chávez e agora com Maduro que, diante do imperialismo, não basta retórica conciliatória nem confiança em organismos internacionais. A história recente é pedagógica. Enquanto o PT se escondeu sob a cama durante o impeachment de Dilma Rousseff, apostando até o último momento em saídas institucionais que nunca vieram, o governo venezuelano respondeu à agressão imperialista mobilizando o povo. Maduro distribuiu armas à população, organizando a defesa nacional, à semelhança do que fizeram os vietnamitas em sua guerra heroica contra os Estados Unidos. Não se trata de voluntarismo, mas de compreensão concreta da luta de classes em escala internacional.

Não é por acaso que a Revolução Bolivariana, iniciada por Chávez em 1999, completa 26 anos de existência. Venceu todas as eleições, sobreviveu a golpes de Estado, sabotagens econômicas, bloqueios, tentativas de assassinato e intervenções externas. Sua longevidade não se explica por habilidade diplomática, mas pela decisão política de enfrentar o imperialismo apoiando-se, ainda que de forma contraditória, na mobilização popular. É essa lição elementar que o governo brasileiro insiste em ignorar, ao custo de se colocar, mais uma vez, do lado errado da história.

E sobrevivendo sob duras penas, após anos de uma profunda crise econômica e política, causada sobretudo pelas brutais sanções impostas pelos Estados Unidos, a economia venezuelana começou a dar sinais claros de recuperação. Ainda assim, o debate econômico é completamente atravessado por uma disputa política. Não se trata de uma controvérsia técnica, mas de uma luta ideológica. Os setores antagônicos ao regime produzem análises carregadas de juízos de valor, revestidas de uma falsa neutralidade científica.

Em 2023, tornou-se recorrente o uso dos termos “desaceleração” e “recessão” para caracterizar a conjuntura econômica. No final de julho, o Observatorio Venezolano de Finanzas (OVF), entidade privada alinhada à oposição, divulgou um relatório apontando uma suposta contração de 7% no primeiro semestre do ano, em comparação com 2022. Inicialmente, o próprio observatório falava em uma queda de 8,3% no primeiro trimestre, número posteriormente revisado para 7,6%, somado a uma retração de 6,3% no segundo trimestre. Esses dados foram amplamente difundidos no exterior, não por acaso: o objetivo central é alimentar a narrativa de colapso permanente.

Segundo o OVF, a recessão seria causada principalmente pela baixa demanda, resultado dos salários reduzidos dos funcionários públicos e das aposentadorias, além da política de reservas bancárias elevadas, que limitaria o crédito. O que chama atenção é aquilo que o observatório deliberadamente omite. Não há qualquer relação estabelecida entre essa conjuntura e as sanções econômicas impostas pelo imperialismo, que estrangularam as receitas do Estado, reduziram drasticamente a entrada de dólares e impuseram um bloqueio comercial de fato. Diante dessa escassez, o governo adotou controles de liquidez para conter a desvalorização do bolívar, ao mesmo tempo em que ampliou gradualmente o limite de crédito bancário, que passou de 10% para 30% dos recursos disponíveis em moeda estrangeira.

Além disso, a credibilidade dos dados do OVF é amplamente questionável. Em diversas ocasiões, seus números sobre inflação divergem em cerca de 30% dos dados oficiais do Banco Central da Venezuela, numa tentativa explícita de deslegitimar as estatísticas estatais e impor sua própria narrativa como supostamente mais confiável.

Os dados concretos da economia real apontam em outra direção. Em março, o sistema bancário público e privado registrou um crescimento do crédito de 44,9% em relação ao mesmo mês de 2022. Em junho, esse aumento chegou a 94,83%. No comércio, a Câmara Venezuelana de Shopping Centers indicou uma recuperação de 40% nas vendas no primeiro semestre de 2023, enquanto a Associação Nacional de Automercados e Autosserviços registrou crescimento em mais de uma centena de categorias de produtos. A própria Fedecámaras, tradicionalmente hostil ao governo, reconheceu um crescimento econômico entre 3% e 4%. No setor estratégico do petróleo, a produção aumentou 11,6% ao longo do ano.

Organismos internacionais como a CEPAL projetaram para 2023 um crescimento mínimo de 5,5%, enquanto o FMI estimou pelo menos 5%. Diante desse conjunto de dados, Nicolás Maduro afirmou corretamente que as previsões de recessão se baseiam em informações distorcidas e interesses políticos bem definidos.

A disputa em torno da economia venezuelana não é apenas uma controvérsia estatística. Ela faz parte da ofensiva imperialista mais ampla contra um país que ousou desafiar a ordem estabelecida. Defender a Venezuela, nesse contexto, não é um gesto abstrato de solidariedade, mas uma posição política concreta na luta contra o imperialismo e sua burguesia associada.

O bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos atingiu de maneira direta a produção agroalimentar venezuelana e o acesso da população aos alimentos, operando como um instrumento clássico de guerra econômica. Ao longo dos últimos anos, setores empresariais internos associados ao capital estrangeiro impulsionaram práticas sistemáticas de boicote, especulação e contrabando, aprofundando carências e déficits nutricionais especialmente entre os setores populares. Trata-se de um mecanismo recorrente na história latino-americana, no qual a burguesia dependente atua como agente interno da pressão imperialista.

Diante desse cenário, o Estado venezuelano busca reorganizar as bases materiais do abastecimento e da produção alimentar por meio de uma combinação de acordos institucionais e políticas públicas de emergência. Entre essas iniciativas, destaca-se a criação dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção, implantados em 2021 como resposta direta ao colapso induzido pelas sanções. Ao final de 2022, os CLAPs distribuíam cerca de 220 mil toneladas de alimentos por mês, convertendo-se no principal mecanismo de garantia mínima de consumo para milhões de famílias trabalhadoras. Paralelamente, ocorreu uma transformação qualitativa na composição das cestas distribuídas, que passaram de uma dependência majoritária de produtos importados para uma predominância de alimentos de origem nacional, alcançando aproximadamente 95 por cento do total.

Essa política foi imediatamente atacada pelo imperialismo. Em 2019, a administração Trump incluiu os CLAPs no regime de sanções, sob a alegação genérica de corrupção, numa tentativa deliberada de asfixiar um programa que funcionava como linha de defesa social diante do cerco econômico. Apesar disso, o governo conseguiu contornar parcialmente o bloqueio à importação de sementes certificadas, fertilizantes e outros insumos estratégicos, o que permitiu uma recuperação gradual da atividade agrícola. No marco da Grande Missão Agro Venezuela, a produção total de alimentos alcançou 11 milhões de toneladas, sendo 7,8 milhões provenientes do setor vegetal e 3,34 milhões do setor animal.

Pela primeira vez em cerca de 25 anos, o mercado interno passou a registrar uma oferta próxima de 97 por cento dos produtos essenciais, com ampliação da diversidade disponível. Em paralelo, o déficit nutricional, que havia alcançado 35,6 por cento em 2017, caiu para 7,7 por cento em 2022. Esses dados não indicam a superação plena do problema alimentar, mas evidenciam uma reversão concreta de uma tendência de colapso induzido externamente. A soberania agroalimentar segue como um objetivo estratégico ainda não plenamente alcançado, dadas as limitações estruturais impostas pelo bloqueio, pelas distorções das cadeias produtivas e pela necessidade de reformulação dos padrões de consumo. Ainda assim, os avanços obtidos demonstram que a política estatal tem operado como fator de contenção dos efeitos mais destrutivos da agressão imperialista.

No mesmo movimento de reorientação econômica, o governo lançou o projeto das Zonas Econômicas Especiais como instrumento para reorganizar o investimento público e privado em territórios específicos. A legislação que rege as ZEE estabelece incentivos fiscais, aduaneiros e operacionais, como a redução de até 50 por cento nos custos portuários para exportação e a possibilidade de reembolso integral do imposto de renda nos primeiros anos de operação, conforme a natureza da atividade desenvolvida. O objetivo central é atrair investimentos considerados estratégicos para o Estado venezuelano, tanto nacionais quanto estrangeiros, em áreas como indústria, ciência e tecnologia, turismo e comércio de bens e serviços.

Diferentemente das experiências anteriores de regimes especiais, que funcionaram como extensões do modelo rentista-petrolífero, as ZEE surgem em um contexto de crise profunda desse padrão de acumulação, agravada pelas sanções e pela interrupção do fluxo de petrodólares. A iniciativa responde à necessidade objetiva de substituir importações, diversificar exportações e criar novas fontes de divisas, inspirando-se em experiências como o Porto de Mariel, em Cuba, e as zonas econômicas especiais da China, ainda que sob condições nacionais muito mais restritivas. Nas ZEE já implementadas, o Estado mantém o controle ou a direção das atividades centrais, reafirmando o papel do investimento público como eixo estruturante da recuperação econômica.

Outro pilar dessa reconfiguração foi a aprovação, em julho de 2023, da Lei Orgânica de Coordenação e Harmonização das Potestades Tributárias dos Estados e Municípios. A norma estabelece parâmetros gerais para taxas e impostos nas diferentes instâncias político-territoriais, buscando reduzir a fragmentação e a sobrecarga fiscal que incidia sobre a atividade produtiva. Entre as medidas previstas estão reduções mínimas de 30 por cento no imposto sobre atividades econômicas industriais, comerciais e de serviços, além de incentivos específicos a contribuintes envolvidos em ações permanentes de saneamento, manutenção e melhoria de espaços públicos.

Essa reforma respondeu a uma demanda antiga de setores produtivos, uma vez que a carga tributária interna chegava a absorver mais de 35 por cento da rentabilidade média das empresas formais. A lei fixa um teto de 3 por cento para o imposto municipal sobre o rendimento bruto das atividades econômicas, com exceções que podem alcançar 6,5 por cento em setores específicos, e determina a eliminação de exigências burocráticas que dificultem o exercício da atividade produtiva. Ao mesmo tempo, fortalece as capacidades do Estado no combate à evasão e à elisão fiscais, configurando-se como um instrumento de racionalização tributária em um contexto de recuperação econômica ainda instável, segundo especialistas.

No âmbito das empresas estatais, o governo adotou uma política de capitalização parcial como forma de garantir recursos para investimento e manutenção operacional em meio às restrições impostas pelas sanções. Entre 2015 e o final de 2021, intensificando-se a partir de 2019, foi aberta a participação de capitais privados em 33 empresas públicas dos setores agroalimentar, turístico e manufatureiro. Grandes corporações estatais, como a Bolivariana de Puertos, a Corporación Venezolana de Minería e, em certa medida, a própria PDVSA, estabeleceram acordos com grupos privados que concentram poder de mercado em seus respectivos setores.

A base jurídica dessa política foi a promulgação, em 12 de outubro de 2020, da Lei Constitucional Antibloqueio para o Desenvolvimento Nacional e a Garantia dos Direitos Humanos, que autoriza a venda de parcelas minoritárias das ações de empresas estratégicas, limitadas entre 5 e 10 por cento do capital. Embora apresentada como um mecanismo de defesa diante do cerco imperialista, essa política expressa também as contradições de um processo que busca preservar o controle estatal ao mesmo tempo em que recorre a instrumentos de mercado para sobreviver ao bloqueio.

Essas iniciativas econômicas se desenvolvem sob uma ofensiva permanente do imperialismo, que não se conforma com a estabilidade alcançada pelo governo Maduro nem com a perspectiva de sua continuidade política. A intensificação das sanções, a pressão diplomática, o financiamento de organizações não governamentais e a promoção de estratégias de desestabilização interna compõem um mesmo quadro de intervenção, cujo objetivo permanece sendo a restauração de um regime plenamente subordinado aos interesses do capital internacional. O embate econômico, portanto, não pode ser dissociado do conflito político mais amplo que atravessa a sociedade venezuelana e que define, em última instância, os limites e as possibilidades do atual processo de recuperação. Toda essa política, atacada diretamente pelo governo Trump sob o falso argumento de corrupção, expressa uma disputa concreta em torno do controle da produção e da distribuição de bens essenciais em um país submetido a um cerco imperialista prolongado.

As sanções, as tentativas de mudança de regime e o financiamento direto de organizações opositoras compõem uma estratégia articulada de desestabilização. A atuação da antiga USAID, o crescimento do financiamento a ONGs e a construção de plataformas políticas voltadas à criação de um cenário de ingovernabilidade evidenciam o uso combinado de instrumentos econômicos, midiáticos e políticos para minar o governo bolivariano. As chamadas agendas sindicais e humanitárias, frequentemente instrumentalizadas, funcionam como vetores de pressão em um contexto de desgaste social produzido pelo próprio bloqueio.

No plano eleitoral, a oposição venezuelana atua de forma alinhada aos interesses imperialistas, organizando primárias que buscam legitimar figuras historicamente comprometidas com golpes de Estado, intervenções estrangeiras e políticas antipopulares. A candidatura em 2024 de María Corina Machado sintetiza esse projeto: uma liderança orgânica da extrema direita, vinculada a redes internacionais reacionárias e defensora aberta de intervenções externas, inclusive militares, como solução para a disputa política interna. O apoio explícito de setores da União Europeia e dos Estados Unidos a essas figuras confirma o caráter tutelado e subordinado dessa oposição.

O balanço geral do governo Maduro, portanto, deve ser analisado a partir dessa totalidade contraditória. Por um lado, trata-se de um governo que resiste ao imperialismo, denuncia seus crimes e busca articular a integração latino-americana e novas alianças internacionais. Por outro, opera dentro de limites estruturais impostos pela dependência histórica, pela correlação de forças interna e pelo cerco externo, adotando medidas que tensionam o projeto original do chavismo. A pilhagem dos ativos venezuelanos no exterior, o caso exemplar da Citgo e o confisco de reservas internacionais ilustram o caráter predatório do imperialismo contemporâneo, que não hesita em recorrer ao roubo aberto para impor seus interesses.

Nesse sentido, a experiência venezuelana expõe, de forma aguda, as contradições de um processo que busca preservar conquistas sociais e a soberania nacional em condições extremamente adversas. A recuperação parcial da economia, ainda que real em alguns indicadores, permanece frágil e permanentemente ameaçada pela ofensiva imperialista. A tarefa histórica colocada à classe trabalhadora venezuelana e latino-americana não se resume à defesa acrítica de governos, mas à construção de uma via ao socialista capaz de romper definitivamente com a dependência, o rentismo e a dominação imperialista que continuam a estruturar a realidade do continente. No Brasil, o cenário não é distinto, apenas mais silencioso e, por isso mesmo, mais perigoso. A passividade institucional e a neutralidade diplomática caminham lado a lado com a desmobilização política interna. Não haverá ruptura com o imperialismo sem ação direta das massas. É necessária a construção imediata de comitês de luta, a retomada das greves operárias e estudantis, das panfletagens, das atividades de agitação e propaganda e da pressão organizada sobre o governo para que rompa, de uma vez por todas, com a política de submissão e deixe de se abrigar sob a barra da saia do Tio Sam. O imperialismo atravessa uma fase aberta de decadência histórica, mas essa decadência não produz automaticamente vitórias para os povos. Ela exige enfrentamento consciente. Enquanto isso, a esquerda brasileira permanece imóvel, paralisada, assistindo à história passar e escolhendo o silêncio como estratégia. Nossos irmãos venezuelanos não podem esperar até depois do carnaval, nem até a próxima nota diplomática inofensiva. A resposta precisa ser agora. Tomar as ruas já! Em defesa da soberania de todos os povos! Contra o imperialismo norte-americano! Defender a Venezuela! Essa é uma tarefa urgente da luta de classes no Brasil e em toda a América Latina.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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