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Fernando Capotondo

Jornalista argentino. Chefe de redação da revista Contraeditorial e diretor do site cultural Llibres

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A pesca chinesa e o outro jogo da lula

Denúncias, desmentidos, navios em águas internacionais e um discurso alinhado a Washington reacendem o debate sobre a pesca de bandeira chinesa na Milha 201

A pesca chinesa e o outro jogo da lula (Foto: Xinhua)

Em plena temporada de denúncias sobre a suposta pesca ilegal de centenas, milhares, milhões de navios de bandeira chinesa em águas internacionais, Pequim voltou a colocar em cena seu conhecido repertório de respostas, ainda que com algumas novidades. Como todos os anos, defendeu a legalidade de suas operações e questionou o viés político de muitos relatórios que circulam no Ocidente, mas desta vez acrescentou um argumento que considerou relevante: a ratificação e a implementação de dois acordos globais que, segundo sustentou, navegam em sentido oposto às acusações que costuma receber.

Ocorre que, ao longo de 2025, a China não apenas ratificou o Acordo sobre Medidas do Estado do Porto das Nações Unidas (PSMA), voltado ao combate à pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (INDNR), como também avançou na aplicação do Acordo sobre Subsídios à Pesca da Organização Mundial do Comércio (ASPMC), ao qual Pequim havia aderido em 2023, dois anos antes da Argentina.

Como responsável pela maior frota pesqueira do mundo (estimada em cerca de 500 mil embarcações, das quais aproximadamente 2.600 são de alto-mar), o país asiático assegurou respeitar esses tratados até a última vírgula, com ênfase na fiscalização da pesca em águas distantes e no monitoramento 24 horas por dia, sete dias por semana, da posição de seus navios — dois pontos que preocupam diversas economias ocidentais. “Quando a China adere a um tratado internacional é para cumpri-lo, não como ocorre em outros lugares”, insistiram fontes da Associação de Pesca de Alto-Mar da China (COFA).

“A adesão ao PSMA representa um avanço nos esforços do país para combater a pesca ilegal e proteger os recursos marinhos, além de confirmar que a China assumirá maiores responsabilidades internacionais na gestão pesqueira”, afirmou Liu Zinzhong, funcionário do Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais da China, ao avaliar o tratado administrado pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

A ratificação chinesa do acordo — o primeiro de caráter global e vinculante a abordar a pesca INDNR — entrou em vigor em 16 de abril de 2025, em meio à polêmica gerada por um convênio assinado por Estados Unidos, Fiji e outros países, autorizando Washington a inspecionar de forma arbitrária navios chineses que se encontrassem em águas insulares do Pacífico.

“A China sempre respeita os direitos soberanos e a jurisdição dos países costeiros em suas zonas econômicas exclusivas (ZEE), de acordo com o direito internacional. Mas nos opomos a que qualquer país recorra à manipulação política e semeie discórdia sob o pretexto de combater uma suposta pesca ilegal”, respondeu o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Lin Jian.

Quanto ao outro acordo da OMC, ele estabelece uma política de tolerância zero à concessão de subsídios caso sejam detectados episódios de pesca INDNR, exploração de espécies sobrepescadas e atividades em alto-mar sem a devida regulamentação. Embora o tratado tenha sido adotado na 12ª Conferência Ministerial da OMC, em junho de 2022, só entrou em vigor em setembro deste ano, quando foi alcançada a aprovação de dois terços dos membros do organismo, com os votos de Brasil, Quênia, Vietnã e Tonga.

Além desses acordos, fontes do Ministério da Agricultura e Assuntos Rurais lembraram o compromisso de Pequim com a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (1981), a Convenção da ONU sobre o Direito do Mar (1996), o Acordo da ONU sobre Populações de Peixes (2006) e o Marco Global de Biodiversidade de Kunming-Montreal (2022). Também destacaram a participação chinesa em organismos internacionais como a Comissão de Pesca do Pacífico Centro-Ocidental (WCPFC), a Comissão para a Conservação dos Recursos Vivos Marinhos Antárticos (CCAMLR), a Organização de Pesca do Atlântico Sudeste (SEAFO), a Comissão de Pesca do Atlântico Sul (CPAS), a Comissão de Pesca do Atlântico Norte (NEAFC) e a Comissão Interamericana do Atum Tropical (CIAT/IATTC).

“O histórico de cumprimento da China nas organizações regionais das quais participa sempre foi elevado”, afirmou outra porta-voz da chancelaria, Mao Ning, ao rejeitar acusações de pesca INDNR pela vigésima oitava vez no ano. Entre seus argumentos, Mao insistiu em um dado-chave: “Segundo o direito internacional, as atividades de pesca ilegal, não declarada e não regulamentada cometidas por navios pesqueiros individuais não devem ser atribuídas aos seus países”.

Milha a mais, milha a menos - Com esse pano de fundo global, a Argentina voltou a ocupar um lugar já conhecido. Como ocorre a cada temporada, quando o calamar Illex argentinus aquece a safra e as luzes das embarcações desenham uma espécie de constelação sobre o Atlântico Sul, ressurgiram as acusações contra a China, com opiniões e relatórios que convergiram na ideia de “saque pesqueiro”, “depredação de recursos” e “extrativismo marítimo” praticados pelos 400 navios estrangeiros — em sua maioria de bandeira chinesa — que operam na chamada Milha 201, logo fora da ZEE.

Justamente nesses dias, foi divulgado um relatório da Marinha Argentina sobre uma operação denominada “Mare Nostrum VI”, que em 4 de dezembro detectou a presença de um navio estrangeiro pescando dentro da ZEE. Embora tenha sido um caso isolado entre centenas, foi mais do que suficiente para despertar suspeitas, manchetes alarmistas e narrativas que confundiram legalidade com ameaça.

Nesse limite tênue, o leque de acusações variou desde aqueles que afirmaram ter provas irrefutáveis contra os pesqueiros chineses até os que reconheceram que eles navegam legalmente em águas internacionais, mas ainda assim os responsabilizaram por uma atividade que afetaria espécies que vivem a apenas uma milha de distância, ou seja, dentro da ZEE argentina.

Diante desse dilema, alguns setores da Argentina pareceram exagerar a retórica contra a “ameaça chinesa” e exaltaram os patrulhamentos realizados ao longo dos 3.000 quilômetros do Mar Argentino como se se tratasse da antesala da Terceira Guerra Mundial. Independentemente da eficácia dessa estratégia, uma das poucas certezas foi que as autoridades buscaram evitar a repetição do vexame de 2024, quando o então ministro da Defesa, Luis Petri, montou uma operação cinematográfica para interceptar um navio chinês que operava sem violar sequer meio centímetro da ZEE. A Argentina vem se resguardando, com tudo o que isso implica.

Do outro lado do balcão, a resposta da China se repetiu com regularidade quase mecânica: rejeitou as acusações de pesca ilegal, sublinhou que nunca recebeu uma denúncia formal da Argentina, insistiu que seus navios operam fora da ZEE, advertiu que uma irregularidade individual não deve ser atribuída ao país e se amparou no arcabouço jurídico internacional, que afirma ter reforçado com os acordos ratificados e em vigor ao longo de 2025.

Mas, como costuma ocorrer nesse tipo de confronto, a discussão não permaneceu no terreno das normas e acabou se deslocando para outros cenários, muito menos transparentes. Nesse outro jogo, o valorizado calamar deixou de ser um recurso pesqueiro migratório e passou a se transformar em uma peça política, útil para construir inimigos e organizar alinhamentos. Já não importava tanto o que acontecia debaixo d’água, mas quem definiria a narrativa a partir da superfície.

Este é, precisamente, o outro jogo da lula: uma disputa que não se resolve no Mar Argentino nem na Milha 201, mas nas águas mais turvas da geopolítica.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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