A República dos Homens Toscos ou os novos trogloditas
Não se pode admitir que o Estado Democrático de Direito seja diminuído ao ponto de ser substituído por uma falsa república, dominada por homens toscos
Antes de fazer um discurso digno do velho Conselheiro Acácio – personagem célebre de Eça de Queiroz, que se comprazia em proferir coisas óbvias com ar de solenidade-, exaltando a “Cadeira da República,” Hugo Motta havia determinado que fossem expulsos do recinto da Câmara dos Deputados, nessa ordem, os jornalistas e o Deputado Glauber Braga. O corpo policial legislativo havia sido chamado para realizar, custasse o que custasse, em termos de violência verbal e física, a evacuação do plenário e das galerias. As cenas de grave atentado contra a democracia, a dignidade parlamentar, a livre expressão e a liberdade de informação, o direito de resistência e a Constituição, contudo, foram fotografadas e filmadas pelos parlamentares que não apenas assistiram às cenas grotescas protagonizadas pelos agentes legislativos, mas procuraram, do modo possível, evitar que as agressões atingissem patamar ainda mais vergonhoso.
Demétrio Magnoli, da Rede Globo, diante da agressão a colegas jornalistas disse, empregando uma feliz figura de linguagem, que em Hugo Motta havia descompasso entre as palavras ações. Em bom português, chamou o Presidente da Câmara dos Deputados de mentiroso.
Dizer que houve mentira, porém, é pouco.
Outros jornalistas, comentando o ocorrido nos canais da mídia corporativa, criticaram o comportamento de Glauber Braga, mas observaram que a reação de Motta foi desproporcional. Na filmagem amadora de um dos parlamentares é, de fato, possível ouvir de alguém a afirmação de que a expulsão se dava sem que fosse precedida sequer de diálogo, isto é, uma negociação simples, para entender a reivindicação de Braga e convencê-lo de que o processo que estava pautado, de decisão sobre sua cassação, seria, ao menos, justo, com a garantia de seus direitos. E, sobretudo, afastar a aproximação de seu caso ao de Carla Zambelli, cuja cassação deveria ter ocorrido, em decisão automática da Mesa da Câmara.
Hugo Motta não quis ouvir o parlamentar, nem lhe deu as mais de quarenta e oito horas que concedera a outros congressistas – até hoje impunes – que invadiram a Câmara, tomaram sua Mesa e impediram que os trabalhos do ano legislativo de 2025 se iniciassem. Nem mesmo o longo tempo de tolerância dado ao deputado preso, acusado de ser mandante do assassinato da Vereadora Marielle Franco, antes do início do processo de sua cassação, fato que se repete em relação a outros dois deputados já condenados definitivamente pelo cometimento de crimes, que se encontram, uma, presa na Itália, aguardando cumprimento de pedido de extradição, outro, foragido nos Estados Unidos. Também, outro deputado, que se encontra em périplo internacional, de modo irregular, buscando comprometer a imagem do Brasil, faltando a sessões da Câmara, sem justificativa, conta com a complacência do atual Presidente da Câmara, sem que se paute o debate sobre sua cassação. Não, nada disso se mostrava urgente a seus olhos, nem passível de uma decisão liminar e de determinação de uso de força e violência incompatíveis com a natureza do Poder legislativo.
Um grau acima de leniência com a ilicitude, Hugo Motta convocava seus pares a votarem o “PL da Dosimetria,” eufemismo da anistia parcial aos golpistas condenados pelo Supremo Tribunal Federal.
Para cidadãos e cidadãs que a tudo isso puderam assistir, pela televisão e pelas redes sociais, restou uma sensação de mal-estar, se não de desilusão, diante de tanta desfaçatez parlamentar.
Para o jurista, contudo, não basta a mera indignação – marca da verdadeira cidadania, que se revolta diante do descumprimento do liame de confiança e legitimidade que deveria existir sempre entre povo e representantes eleitos. É preciso qualificar os atos a que todos, perplexos, presenciamos, mesmo que de modo vicário e distante, nas telas de computador e de TV.
Desse ponto de vista, que examina os acontecimentos pela lente jurídica da Constituição, o Presidente da Câmara extrapolou o limite da licitude.
Três atos gravemente ilícitos foram cometidos:
a) a expulsão, violência e linguagem grosseira contra jornalistas:
b) a agressão a deputados;
c) a permanência da sessão, malgrado a informação de que deputados estariam impedidos de comparecer, em decorrência das agressões.
Para a Constituição Cidadã, a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não podem sofrer qualquer restrição, sendo proibida toda e qualquer censura de natureza política ou ideológica (artigo 220 e seu § 2º). Ainda, que se deve respeito irrestrito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (artigo 5º XIII).
Já o Regimento Interno da Câmara dos Deputados refere nos limites das atribuições do Presidente da Câmara, especificando que lhe cabe tão somente “convidar o Deputado a retirar-se do recinto do Plenário, quando perturbar a ordem” (alínea i do inciso I do artigo 17), jamais expulsá-lo, ainda mais com uso de violência. Cabe, ainda, ao mesmo Presidente, como dever regimental, “zelar pelo prestígio e decoro da Câmara, bem como pela dignidade e respeito às prerrogativas constitucionais de seus membros, em todo o território nacional” (alínea g do mesmo inciso).
Esses dois dispositivos foram infringidos por Hugo Motta, na gestão escandalosa da sessão de 9 de dezembro de 2025, dia fatídico para a democracia brasileira e para a dignidade parlamentar.
Essa dignidade significa decoro e respeito. Agir contra ela leva ao cometimento de delito grave, pela chamada falta de decoro parlamentar, regulada no mesmo Regimento e no Código de Ética da Câmara.
São esses diplomas legais, na regulamentação do que prevê a Constituição, que estabelecem ser “incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional” (§ 1º), uma vez que são deveres fundamentais de todo deputado e deputada “promover a defesa do interesse público” (art. 3º, inciso I), respeitar e cumprir a Constituição, as leis e as normas internas da Casa e do Congresso Nacional (inciso II), zelar pelo prestígio, aprimoramento e valorização das instituições democráticas e representativas e pelas prerrogativas do Poder Legislativo (inciso III), e exercer o mandato com dignidade e respeito à coisa pública e à vontade popular, agindo com boa-fé, zelo e probidade (inciso IV), tratar com respeito e independência os colegas, as autoridades, os servidores da Casa e os cidadãos com os quais mantenha contato no exercício da atividade parlamentar, não prescindindo de igual tratamento (inciso VII), e prestar contas do mandato à sociedade, disponibilizando as informações necessárias ao seu acompanhamento e fiscalização (inciso VIII).
São normas claras, que o Presidente deve respeitar acima de todos os demais membros da Casa legislativa.
A infringência, clara e de ordem pública e notória, uma vez que redes nacionais de mídia transmitiram fotos e vídeos (tomados por parlamentares, uma vez que a imprensa foi proibida de estar presente, após sua expulsão ilegal e arbitrária), levando Hugo Motta a se sujeitar às penalidades e ao processo disciplinar previstos no Código de Ética e Decoro Parlamentar. Esse Código afirma que constituem “procedimentos incompatíveis com o
decoro parlamentar, puníveis com a perda do mandato (artigo 4º, inciso I) abusar das prerrogativas constitucionais asseguradas aos membros do Congresso Nacional (Constituição Federal, art. 55, § 1o), e praticar ofensas físicas ou morais nas dependências da Câmara ou desacatar, por atos ou palavras, outro parlamentar (artigo 5º, inciso III).
Muito bem, neste breve texto é meu dever apontar que as medidas para que esse Presidente seja processado e punido pelos atos que cometeu devem ser tomadas pela Comissão da Ética da Câmara, que não pode deixar de iniciar, de imediato e de ofício, o procedimento disciplinar, sob pena de cometimento de crime de prevaricação.
Se houver omissão, caberá ao Ministério Público tomara as providências para a apuração das responsabilidades perante a Constituição brasileira.
Isso sem prejuízo de eventual nulidade do prosseguimento da sessão que acolheu – para o espanto nacional – a inconstitucional proposta de dar anistia parcial aos criminosos de janeiro de 2023.
Trogloditas, diz a etimologia do termo, seriam seres que vivem em buracos e não a céu aberto. Não se pode admitir que o Estado Democrático de Direito seja diminuído ao ponto de ser substituído por uma falsa república, dominada por homens toscos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




