Daniele Barbosa Bezerra avatar

Daniele Barbosa Bezerra

Doutora em Educação (UFC), professora, pesquisadora de gêneros biográficos e memorialísticos, contista e cronista.

41 artigos

HOME > blog

A rinha dos Batutas

Ano passado, o Velho Batuta era explicitamente racista. Esse ano, o Velho Racista foi substituído por outro

Papai Noel (Foto: DALL-E/IA)

Nem a aura de “Jingle Bells” nos deixa em paz usufruindo do recesso laboral, do amor dos nossos e da hipocrisia de outros! Help-me Papai Noel! Mas que Papai Noel? Os progressistas ou os de extrema direita? É, meus leitores, os dois existem, descobri esses dias. Quando soube tive uma crise de risos, bem típica do meu eu ao ser confrontada com os absurdos da vida, puro instinto de sobrevivência para relaxar diante do bizarro. Ri também, porque queria escrever uma crônica sobre o Natal, mas esse texto acabou tomando novos rumos, a partir da história contada por minha amiga, quase irmã, que se mete numas arengas inimagináveis, até no Natal praticando a maternidade. Jesus, salvai essa alma!

Ela e o filho pequeno foram fazer uma romaria nos shoppings da cidade de Fortaleza atrás do Papai Noel. É isso mesmo. Somos esquerdopatas raiz, mas quem tem filho já fez alguma dessas presepadas, como dizia a minha saudosa mãe, já “pagou a língua”. Eu mesma já me vi, em véspera de Natal, no calor infernal de final do ano, no centro de Fortaleza, atrás de um determinado brinquedo, porque o meu filho, um menino de quatro anos, não queria o boneco falsificado, queria o boneco original. É gente, eu fiz isso. E não só voltei com o boneco, depois de muito andar, como voltei com a imagem de um Papai Noel, enorme, para colocar perto da mesa com a ceia de Natal. 

Minha tia e minha mãe, subversivas de carteirinha, quando viram aquele objeto do mais profundo mau gosto, se puseram a rir e a perguntar o que tinha acontecido comigo para gastar dinheiro com aquela coisa estranha. Confesso que foi uma mistura de calor, somada à pressão das festas de final de ano, aliadas à necessidade de uma mãe solo querer agradar o bonitinho exigente. Um coquetel de doidice. Não me julguem! Já paguei os meus pecados, ainda pago alguns, mas estou quase liberta.

Essa minha mana, em suas andanças natalinas, arrastando o menininho e todas as quinquilharias dele, encontrou Papai Noel de toda espécie. No maior shopping da cidade, a burocracia para chegar perto do Velho Batuta era tão grande, que os poucos segundos ao seu lado eram cronometrados por suas assistentes e o velhinho, fantasiado com todos os apetrechos pesados e calorentos, ficava calado, sério, não interagia com as crianças, era apenas uma imagem registrada nos smartphones familiares.  

Ano passado, em outro shopping, o Velho Batuta era explicitamente racista, o que foi perceptível a todos os pais que estavam na fila para vê-lo e que causou um profundo mal-estar entre aqueles que se rendiam à fila interminável da caverna do capitalismo e à tirania infantil. Minha mana ao se aproximar desse Papai Noel com o seu menino no colo, constatou que os pais tinham razão, ele era racista mesmo! Quando o menininho se aproximou dele, o Velho Batuta o olhou de cima abaixo, viu que o pivetinho era branco, de olhos claros e fez as seguintes declarações: “Nossa, que piazinho bonito!” Piazinho? Sei...

Porém, esse ano, o Velho Racista foi substituído por outro, pois o passe dele havia sido comprado pelo shopping mais antigo e maior da cidade, tal e qual o contrato de jogadores de futebol. Sem querer, ela descobriu que existem esses movimentos contratuais no mercado de Papais Noéis, e uns valem mais que outros, como apregoa o grande capital. Quanto mais branco, de bochechas rosadas e barba natural , aumenta o seu passe. 

Para não perder a viagem nessa procissão infantil resolveu ver, para crer. A criatura tem disposição! Foi a esse shopping verificar qual o tipo que substituiu o racista do ano passado. Para sua surpresa encontrou um Papai Noel caloroso, amoroso, atencioso com as famílias e com as crianças. Esse velhinho batuta interagia com os infantes de acordo com as suas peculiaridades e de suas famílias. Se os pais estavam com camisas do Fortaleza, ele fazia o “L” com a mão, de Leão; se era Ceará fazia o “C”; se a criança se expressava de um jeito, ele tentava imitá-la. O Noel era um amorzinho, simpático e gracioso. Após alguns minutos de interação com ele, minha mana e seu menino saíram satisfeitos com o suposto velhinho. A saga de uma mãe cansada havia acabado. Ele pediu-lhe que o marcasse nas redes sociais e desse a sua impressão sobre o “mágico” encontro.

Minha mana, que é gata escaldada e tem muito medo de água fria, antes de marcá-lo na foto com o seu meninote, resolveu investigar o perfil do Papai Noel. Para sua surpresa e magia natalina desfeita, ele seguia as redes sociais dos componentes da familícia e se mostrava um fã ardoroso de todos. Envergonhada por ter sido engabelada pelo velho batuta, printou a página do velho do saco, sem o nome dele, óbvio, com a seguinte legenda: “O Papai Noel pediu para eu marcá-lo, mas certamente não iria gostar muito”, pois o filho dela, meu sobrinho postiço, tem o nome da maior liderança de esquerda desse país.

A partir daí, só dor de cabeça. O velhote bolsonarista passou-lhe a enviar mensagens e não só ele, outros também. Os Papais Noéis esquerdopatas entraram na rinha, dando-lhe apoio. Essa mãe cansada envolta em mensagens soube que existe um grupão de Papais Noéis do Brasil e tal qual a sociedade, eles estão divididos em velhotes de esquerda e de direita. Um Noel esquerdopata fez contato com ela e informou-lhe que já foi vítima de abaixo assinado, de demissão, de exposição em redes sociais e até ameaça de morte lá pelas bandas do sul porque os outros “bons velhinhos” descobriram que ele seguia as redes do presidente Lula. 

Minha mana que foi apenas cumprir o penoso papel de mãe, agora tem o seu belo rosto exposto nas hordas de Papais Noéis da extrema direita. Nem a magia nos salva! 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Artigos Relacionados