As razões da obsessão de Trump pela Groenlândia
Trump é brutal. Jogou no lixo toda a ordem mundial “baseada em regras”, o multilateralismo e as antigas alianças
Em 13 de outubro deste ano aconteceu um fato muito revelador das atuais disputas geopolíticas entre China e EUA.
O navio cargueiro chinês Istanbul Bridge atracou no porto britânico de Felix Stowe.
Até aí, nada demais. O Reino Unido é o terceiro maior mercado de exportação da China. Navios chineses atracam em portos britânicos o tempo todo.
Mas, nesse caso, foi diferente. O Istambul Bridge foi o primeiro grande navio cargueiro chinês a viajar diretamente para a Europa pelo Oceano Ártico.
A viagem durou apenas 20 dias. Normalmente, leva o dobro do tempo, nas rotas tradicionais pelo Canal de Suez ou ao redor do Cabo da Boa Esperança.
Beijing comemorou. Saudou a jornada como um “avanço geoestratégico e uma contribuição para a estabilidade da cadeia de suprimentos mundial”.
Quem não gostou foi Trump.
Trump sabe que as rotas do Ártico, que estão ficando crescentemente desimpedidas com o aquecimento global, serão vitais para a logística das cadeias de suprimentos no Hemisfério Norte.
Sua decisão de enviar um “enviado especial” para a Groenlândia com a missão de tornar aquele território “parte dos EUA”, embora tenha chocado o mundo e provocado a indignada reação da Dinamarca, membro da Otan, tem de ser levada a sério.
Há muito em jogo.
Com efeito, como já deixei claro em artigo anterior (“A Disputa pelo Ártico”), o Oceano Ártico comunica, por vias marítimas bem mais curtas e cada vez mais desimpedidas, a Europa, a Ásia e a América do Norte. Além da histórica Passagem Noroeste, há também a “Northern Sea Route” e a “Transcolar Sea Route”, as quais poderão ficar totalmente desimpedidas de gelo, no verão, até 2035. O mapa a continuação é bastante elucidativo.

Por isso mesmo, os EUA, que têm o Alasca banhado pelo Oceano Ártico, estão muito empenhados no domínio da região e na contenção das reivindicações da Rússia e do Canadá nesses territórios sensíveis.
O domínio dessas rotas poderá dar uma vantagem logística comparativa de peso. Ademais, para a China, o uso das rotas do Ártico permitiria “driblar” um eventual bloqueio do Estreito de Malaca. Trump percebe isso com apreensão.
A Groenlândia, observe-se, está bem no centro dessas rotas.
Acrescente-se que, de acordo com o Serviço Geológico dos EUA (USGS), existem, ao menos, 90 bilhões de barris de petróleo e 1.670 trilhões de pés cúbicos de gás natural ao norte do Círculo Polar Ártico. No geral, estima-se que cerca de 10% dos recursos petrolíferos mundiais estejam no Ártico. A porção dominante dos hidrocarbonetos offshore do Ártico, tal como refletido nos estudos do USGS, está localizada justamente dentro das atuais Zonas Econômicas Exclusivas disputadas pelos EUA, pela Rússia e pelo Canadá. Há também grandes reservas minerais de terras raras e de outros minerais críticos na Groenlândia, as quais estão se tornando mais acessíveis com o degelo crescente.Em tempos recentes (outubro de 2022), os EUA lançaram a “Estratégia Nacional para a Região Ártica” e um relatório sobre como as mudanças climáticas impactam as bases militares americanas. Os EUA também abriram um consulado em Nuuk, na Groenlândia, nomearam um embaixador-geral para a região do Ártico no Departamento de Estado e um vice-secretário adjunto de defesa para o Ártico.
Segundo a mencionada Estratégia, a guerra na Ucrânia e o crescimento das tensões geopolíticas tornaram qualquer cooperação com a Rússia no Ártico virtualmente “impossível”.
Ainda conforme tal Estratégia, “para garantir os nossos interesses, à medida que a atenção, os investimentos e as atividades aumentam no Ártico nas próximas décadas, os Estados Unidos reforçarão e exercitarão as capacidades militares e civis no Ártico, conforme necessário para dissuadir ameaças e para antecipar, prevenir e responder a ameaças”. Ademais, o texto da Estratégia prevê o aprofundamento “da cooperação com os Aliados e parceiros do Ártico, em apoio a estes objetivos”.
Desse modo, os EUA pretendiam, nessa estratégia, construir uma grande aliança no Ártico, destinada a conter a Rússia e a China.
Este último objetivo, contudo, parece ter sido abandonado por Trump, que ameaça claramente romper com a Dinamarca (um aliado da Otan) e se apossar da Groenlândia. O interesse em tornar o Canadá o 51º estado dos EUA também tem relação com essa disputa por rotas comerciais e recursos estratégicos, já numa perspectiva nacionalista e francamente imperialista.
Na realidade, Trump quer tornar o Mar Ártico um mar essencialmente estadunidense, controlando a abertura das novas vias da logística mundial e os imensos recursos naturais que estão se tornando crescentemente acessíveis. Esse domínio muito contribuiria, de fato, para uma contenção dos interesses da Rússia e da China, em nível internacional.
Entende-se, assim, a obsessão de Trump pela Groenlândia.
Trump é brutal. Jogou no lixo toda a ordem mundial “baseada em regras”, o multilateralismo e as antigas alianças.
Seu claro objetivo é construir uma nova ordem mundial hobbesiana, exclusivamente baseada no unilateralismo e na força.
Nesse contexto, as soberanias de outros países, mesmo de antigos aliados, são apenas inconvenientes obstáculos que podem ser varridos.
Isso vale tanto para a Dinamarca quanto para a Venezuela. A questão não é ideológica; é geopolítica.
Sua recente decisão de construir uma nova classe de super encouraçados revela a disposição de expandir, pela força, a projeção dos interesses dos EUA por todos os mares.
Do tropical Caribe ao gélido Ártico.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




