Bangue-bangue: quando a morte se torna política de segurança pública
Lógica sanguinária retorna, agora institucionalizada como política de segurança pública, com a chamada “gratificação faroeste”, recém-aprovada pela Alerj
Nos filmes de faroeste, não existe meio-termo: quem saca mais rápido, sobrevive. O herói solitário vaga por terras áridas onde a bala vale mais que a palavra, e o medo é a ferramenta que organiza a vida. No Brasil, esse imaginário encontrou terreno fértil. Renato Russo cantou em “Faroeste Caboclo” a história de João de Santo Cristo, jovem de periferia do interior do Brasil, com uma trajetória profundamente marcada pela violência.
É essa lógica sanguinária que retorna, agora institucionalizada como política de segurança pública, com a chamada “gratificação faroeste”, recém-aprovada pela Alerj. É morte como objetivo final e bala como modus operandi.
Essa política não é nova. Na década de 1990, ela já havia sido implementada e deixou muitos rastros de sangue. Mortes por autos de resistência dobraram nos quase três anos da antiga premiação faroeste paga a policiais no Rio. Além do número de civis mortos disparar, a letalidade policial também aumentou.
Essa metodologia da barbárie é um claro convite à corrupção policial com a digital da lei. O mais revoltante é ver quem está por trás desse tipo de proposta. São, em grande parte, deputados da extrema-direita, que se apresentam como “guardiões dos valores cristãos”, mas repetem frases prontas como verdadeiros papagaios de pirata. Mas é pura hipocrisia. O mesmo Jesus, em quem eles dizem acreditar, foi preso, torturado e morto pelo Estado.
Foi tratado como inimigo público, como alguém que deveria ser eliminado. E, ao contrário da lógica que esses parlamentares defendem, Jesus nunca premiou a morte, nunca celebrou a violência. Ele acreditava nas pessoas, mesmo nas que erravam. Sua mensagem era de vida. Ignorar isso é distorcer a fé para legitimar o extermínio.
E o extermínio tem alvo nas costas. Não se trata de estatística abstrata. Em 2023, 90% das pessoas mortas por policiais no Brasil eram negras. São jovens de favela, são trabalhadores da periferia, são homens e mulheres que aparecem no noticiário, vítimas de um Estado que deveria protegê-los. É por isso que a gratificação faroeste é tão perversa: porque sabemos quem vai pagar essa conta, sabemos quem vai cair primeiro.
O caso do jovem Herus, morto numa operação do BOPE no Morro do Santo Amaro, é um desses exemplos dolorosos. Herus tinha futuro, tinha vida pela frente. Mas o Estado o tratou como descartável. O caso do cantor Gugu, dos Hawaianos, algemado e espancado na frente da própria família, também é um retrato dessa violência seletiva. Gugu também poderia ter sido uma vítima fatal da violência policial que permeia a realidade das favelas.
Não podemos naturalizar que mães sigam enterrando seus filhos em silêncio, enquanto políticos fazem discursos de bravata nas casas legislativas, visando a próxima eleição. Não podemos permitir que a morte se transforme em política de governo. É a morte transformada em critério de desempenho, a bala como instrumento de política pública.
E é exatamente isso que a gratificação faroeste representa: a institucionalização da barbárie. A Lei Orgânica da Polícia Civil é clara ao afirmar que a missão da corporação é proteger a vida, a integridade física e a dignidade da pessoa humana. Mas o que vemos é o completo abandono desse princípio em nome de uma política de morte. Ao invés de investigar, ao invés de produzir inteligência, ao invés de desmantelar as redes de financiamento do crime, opta-se por colocar um preço sobre cada corpo abatido.
A maior apreensão de armas já realizada no estado do Rio de Janeiro — mais de mil fuzis encontrados em Nova Iguaçu — aconteceu sem um tiro. Foi fruto de inteligência e investigação, não de bangue-bangue. O que precisamos é exatamente disso: mais inteligência.
O impacto da gratificação faroeste vai além da morte imediata de civis e policiais. Ela altera a percepção de segurança, reforçando a lógica do medo. Nas favelas, a população passará a conviver ainda mais com a ameaça constante de operações letais, enquanto os agentes da lei terão passe livre.
Como bem analisa o sociólogo Gabriel Feltran, o regime estatal se sustenta em uma “armadura legal republicana”, mobilizando noções como lei, ordem, cidadania e democracia como mediadores normativos dos conflitos sociais, mas a distância entre esses princípios e a realidade concreta é evidente, sobretudo nas periferias urbanas. Enquanto o discurso oficial promete direitos e justiça, o que se observa no cotidiano das favelas é que tais categorias funcionam mais como instrumentos de controle do que como garantias de cidadania.
A lógica da gratificação faroeste se torna ainda mais paradoxal quando observamos os números do orçamento estadual para 2025. Enquanto a segurança pública recebeu R$ 19,45 bilhões, a assistência social teve apenas R$ 1,18 bilhão destinados a ela. Ou seja, o governo estadual destinou mais de 16 vezes o valor para a segurança pública em relação à assistência social.
O povo do Rio de Janeiro não precisa de um roteiro de faroeste. O velho oeste deve permanecer em Hollywood. O Rio de Janeiro merece um futuro melhor. Um futuro onde as pessoas tenham direito à dignidade. Seguiremos na trincheira de luta nas Comissões das Favelas e de Combate ao Racismo na Câmara de Vereadores. Cada vida não é apenas um CPF. Cada vida tem muitos caminhos e grandiosas possibilidades.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




