Brasil precisa ouvir os nossos "domadores de leões"
Reimont defende nova Reforma Psiquiátrica
Gerson de Melo Machado, o Vaqueirinho, era portador de esquizofrenia, filho e neto de pessoas com esquizofrenia, com uma história de vida que nos acusa, como sociedade, de falhas e fracassos. Era filho da desigualdade que lança os miseráveis em mais esse imenso contingente de invisíveis, abandonados e sem direitos.
Menino ainda perdeu a família. Foi para um abrigo, com os quatro irmãos, mas não conseguiu adoção. Aos 10 anos, foi encontrado sozinho em uma estrada e levado ao Conselho Tutelar de Mangabeira, que frequentou até os 16 anos.
A assistente social Verônica Oliveira, do CT, despediu-se dele nas redes sociais: "Gerson, meu menino sem juízo… Quantas vezes (...) você dizia que ia pegar um avião para ir a um safári na África cuidar de leões (...). Você só queria voltar a ser filho da sua mãe, que é esquizofrênica e não tinha condições de cuidado. Sua avó, também com transtornos mentais. Mas a sociedade, sem conhecer sua história, preferiu te jogar na jaula dos leões."
Gerson morreu aos 19 anos, ao pular para dentro dos seus sonhos de domar leões. Era um dos mais de 18 milhões de “domadores” brasileiros – pessoas de todas as cores, origens, gênero e crenças, que, segundo a Associação Brasileira de Psiquiatria, sofrem de graves transtornos mentais; 8,4% da população do país.
Em 2024, quase meio milhão de afastamentos do trabalho foi causado por problemas de saúde mental, o maior número em pelo menos dez anos, como mostrou estudo do Ministério da Previdência Social; um aumento de 68% em relação a 2023.
De 2014 a 2024, o atendimento a crianças e adolescentes com transtornos de ansiedade, no SUS, deu um salto – aumentaram 1.575%, entre as crianças de 10 a 14 anos, e 3.300%, entre os adolescentes, de 15 a 19 anos.
Dos mais de 547 mil esquizofrênicos adultos, os homens de 40 a 59 anos, de baixa renda e pouca escolaridade, desempregados e que vivem sozinhos são maioria, como aponta estudo da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), USP (Universidade de São Paulo) e UFPR (Universidade Federal do Paraná).
Os números quase inacreditáveis e frios das estatísticas escondem pessoas e dores. São eles os “domadores” cotidianos de leões interiores, de monstros invisíveis que suscitam pânico e que enfrentam a tragédia também cotidiana de preconceitos, isolamento social e estigmas cruéis – chamados de vagabundos, indesejáveis, perigosos, assassinos potenciais.
Os “domadores” e suas famílias são frequentemente culpabilizados, como já o foram os portadores de HIV (“quem mandou?”, “se tivesse educação, isso não acontecia”, “prende, que fica logo bom”). Quanto mais pobres, maior o preconceito.
Muitos espantam o medo e o abandono nas drogas e no álcool, numa simbiose que forma uma bola de neve. As famílias e os amigos, aqueles que permanecem e resistem, adoecem.
Os números, se são frios, mostram uma realidade crescente a ser encarada. Temos uma epidemia e precisamos de novas atitudes e ferramentas para enfrentá-la.
As doenças mentais caminham de modo acelerado para virar um dos principais problemas de saúde pública no Brasil. As políticas aplicadas até agora já não são suficientes. Os equipamentos públicos, como os Centros de Assistência Psicossocial (CAPSs), já não dão conta.
Precisamos de uma nova Reforma Psiquiátrica, para responder ao novo desafio, que trate a vulnerabilidade e a desigualdade sociais como elementos centrais no cuidado em Saúde Mental.
O governo Lula, referência mundial em Saúde Pública, precisa tomar à frente de um amplo debate, envolvendo especialistas e universidades, mas também usuários dos serviços (eles devem ser ouvidos, sim) e seus familiares. A participação da sociedade é peça chave no combate à estigmatização e ao preconceito.
Não há soluções fáceis, mágicas e de curto prazo, mas é preciso começar essa caminhada, para que nossos “domadores de leões” nunca mais pensem em pular na jaula.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




