Com a aprovação da lei do devedor contumaz, o Brasil recupera mais de R$ 200 bilhões anuais de sonegadores de impostos
Fazer justiça fiscal é também estabelecer normas claras, critérios objetivos, fortalecer instituições e tratar o devedor contumaz com coragem política
O projeto que cria o Código de Defesa do Contribuinte, inspirado na lógica civilizatória do Código de Defesa do Consumidor, nos remete ao debate historicamente relegado à técnica. Estabelece princípios simples, quase óbvios, mas que há muito perderam força no labirinto fiscal. Em um país acostumado a ver o contribuinte como suspeito permanente, o projeto propõe uma mudança cultural que valoriza a transparência, a boa-fé, o respeito, o equilíbrio, a presunção de honestidade e o direito de defesa.
O Estado precisa reconhecer que, para cumprir obrigações tributárias, deve haver comunicação clara e objetiva com os contribuintes, prazos razoáveis, possibilidade de correção de eventuais erros antes de possível punição.
Parece pouco, mas é o que distingue a Administração moderna da selva burocrática que tantas vezes empurra cidadãs, cidadãos e empresas à informalidade ou ao litígio interminável. A boa-fé, quando é pactuada entre as partes, estabelece confiança. E não há sistema tributário que funcione sem confiança.
Esse movimento civilizatório não se limita a proteger cidadãs e cidadãos contribuintes de boa conduta. Ele enfrenta o devedor contumaz, que solapa o Brasil desde tempos coloniais. Não falamos do comerciante que atrasa um imposto porque enfrentou um mês ruim, nem da empresa que sofre com uma crise setorial, ou do empreendedor que tenta se reerguer após uma calamidade. O devedor contumaz é um personagem que transforma o não pagamento em método, estratégia, modelo de negócio. O devedor eventual é vítima das circunstâncias. O contumaz, ao contrário, cria as circunstâncias para multiplicar suas vantagens ilícitas.
O projeto expõe números que mais parecem a anatomia de um crime sistêmico. Para se enquadrar como contumaz, a empresa precisa acumular dívidas acima de R$ 15 milhões, mantidas de forma reiterada, injustificada, superior ao valor de seu próprio patrimônio, e sem qualquer mecanismo de garantia, parcelamento, depósito ou litígio responsável. É a inadimplência profissionalizada, sofisticada, planejada. É a engenharia do calote travestida de atividade econômica.
O impacto desse comportamento vai muito além das estatísticas fiscais: destrói concorrência, fecha empresas corretas, desemprega famílias, desorganiza cadeias produtivas inteiras. Nos setores com carga tributária elevada, como o de combustíveis, bebidas, tabaco, consolidou-se uma lógica perversa: empresas são abertas para acumular dívidas milionárias, esmagar competidores honestos e desaparecer antes que o Estado consiga alcançá-los. O resultado é um país onde o preço do crime é baixo e o custo da honestidade, altíssimo.
As investigações recentes da Receita Federal revelaram as estruturas de funcionamento dessa engrenagem e de como ela prosperou ao longo da última década. A Operação Carbono Oculto descobriu uma cadeia de sonegação da qual faz parte usinas, refinarias, distribuidoras e postos de combustíveis, enquanto a Operação Poço de Lobato expôs uma teia de offshores e fundos que movimentaram mais de R$ 70 bilhões em um único ano. Não são apenas desvios marginais. Trata-se de infiltração do crime fiscal na economia real.
A estimativa de lucros ilegais dessas organizações chega a R$ 62 bilhões anuais, quatro vezes mais do que o tráfico de cocaína gera no Brasil. É um dado que derruba ilusões. Ou seja, o maior negócio ilícito do país não está na fronteira, mas nas notas fiscais que nunca existiram.
Nesse contexto, o Código de Defesa do Contribuinte e o enquadramento objetivo do devedor contumaz compõem uma mesma narrativa: a de que o Brasil começa a separar o joio do trigo. Programas da Receita Federal como Confia, Sintonia e OEA completam essa arquitetura, oferecendo benefícios reais, redução de multas, parcelamentos extensos, diálogo antecipado com o Fisco, autorregularização sem punição, para quem cumpre a lei e demonstra governança transparente. Ao sabotador da ordem econômica, o rigor da lei. Quem faz a coisa certa terá caminhos facilitados.
Fazer justiça fiscal é também estabelecer normas claras, critérios objetivos, fortalecer instituições e tratar o devedor contumaz com coragem política. O país perde cerca de R$ 200 bilhões por ano com sonegadores estruturados.
O contencioso tributário, verdadeiro labirinto de recursos e brechas legais, já acumula cerca de R$ 5,5 trilhões, dos quais mais de R$ 1 trilhão está paralisado em disputas judiciais e administrativas.
Isso significa menos escolas, menos hospitais, menos investimentos, menos futuro. Cada real recuperado dos que lucram conscientemente à margem da lei é uma vitória coletiva, sobretudo das empresas que pagam o que devem, enfrentam crises, mantêm empregos e disputam mercado de forma limpa.
Este projeto não é uma cruzada moralizante. É um passo civilizatório. Ele reconhece o contribuinte como sujeito de direitos, pune quem faz da fraude seu modo de vida e protege o ambiente competitivo que sustenta a economia.
Há mudanças que não precisam de manchetes grandiosas para transformar países, mas princípios claros e objetivos de transparência e responsabilidade compartilhada. Num país de tamanha desigualdade como o Brasil, é inadmissível que a sonegação fiscal chegue ao ponto que chegou. As injustiças sociais, arraigadas profundamente na nossa história, se reciclam, transformam privilégios em regras e desigualdades em estruturas de poder.
A justiça fiscal é o primeiro passo para a justiça social. Mas, para isso, é preciso romper o pacto silencioso que mantém o País aprisionado entre o rentismo e a servidão. Nenhum país do mundo se tornou justo e desenvolvido sem enfrentar privilégios.
O governo Lula está fazendo justiça fiscal. Aprovou a reforma tributária do consumo e da renda; a lei que isenta de pagamento de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, descontos para até R$ 7.350 mil; cobrança gradual, com alíquota máxima de até 10%, sobre os rendimentos a partir de R$ 600 mil anuais; e a lei do devedor contumaz, para que o Estado tenha instrumento eficaz de combate à sonegação. Com essa reforma, o projeto de desenvolvimento sustentável com justiça fiscal, social e ambiental, do governo Lula, o Brasil sedimenta as bases para a construção da nação republicana, democrática, justa e livre, que sonhamos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.




