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Filipo Perotto

Filipo Studzinski Perotto, 42, nascido em Porto Alegre (RS), doutor em Inteligência Artificial pela Universidade de Toulouse, atualmente é pesquisador titular da Agência Nacional de Pesquisa Aeroespacial Francesa (ONERA)

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Conversa com Walter Delgatti, o herói relegado

É muito difícil entender a aproximação de Delgatti com o bolsonarismo. É preciso, no entanto, fazer um exercício de empatia

Walter Delgatti, Carla Zambelli e Alexandre de Moraes (Foto: Reprodução/Twitter | LR Moreira/Secom/TSE)
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A maior parte das mudanças de rumo que ocorrem nos processos sociais são efeito da combinação de uma multitude de ações, representando movimentos coletivos. De vez em quando, porém, a ação particular e específica de um único indivíduo pode ser o elemento necessário e determinante. No caso da história política recente do Brasil, a volta por cima de Lula e o retorno da esquerda democrática ao poder só foi possível graças à revelação das conversas reservadas de Moro e Dallagnol, trazidas à luz por Walter Delgatti Neto, e que levaram à definitiva desmoralização da operação lava-jato e de seus protagonistas.

A construção desse personagem, o “Hacker de Araraquara”, passou então a ser motivo de curiosidade e interesse, e também da ação de muita gente. À época dos vazamentos, no episódio conhecido como “vaza-jato”, Delgatti também virou alvo da gratidão da esquerda e da revolta da direita. A pesar do fruto de sua ação ter sido de imenso benefício para o país, a invasão dos dispositivos e divulgação dos dados não deixa de constituir um crime. Walter Delgatti passou uma temporada na prisão e outra em liberdade condicional cumprindo medidas cautelares severas.

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Walter voltou aos noticiários de forma surpreendente em agosto de 2022, quando descobriu-se um encontro dele com expoentes do Bolsonarismo: Carla Zambelli (deputada do núcleo duro da extrema-direita fascista), Valdemar Costa Neto (presidente do PL, sigla que abriga esse pessoal), e o próprio Jair Bolsonaro, à época, ainda presidente da república, e candidato à reeleição num vale-tudo bem conhecido. 

Nessa semana, áudios vazados não por ele, mas dele, Walter, com sua própria voz, evidenciaram que essa aproximação tinha um objetivo muito claro: usar o mesmo personagem para repetir a mesma história. No fundo, um plano simples. O juíz-alvo da vez seria o ministro do STF Alexandre de Moraes, taxado de arqui-inimigo pelas falanges bolsonaristas de prontidão. Bastaria um elemento com apelo forte o suficiente para lançar a tal “intervenção constitucional”. Parece delírio, mas para quem vive na midiosfera extremista, tudo tem muita lógica. Na verdade, o recurso a um golpe de estado não era apenas um blefe retórico, e talvez tenhamos estado muito mais perto de uma ruptura do que imaginamos.

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Uns dias antes dessa última revelação, enviei uma “carta para o Walter”, por e-mail. Nunca havia tido contato algum com ele antes. Ele me despertava interesse e simpatia. Me dava pena pensar que ele estava se aproximando e sendo usado pela extrema-direita, motivado por uma sensação de falta de reconhecimento.:

“Caro Walter, (...) você realizou dois feitos notáveis. Primeiro, conseguiu hackear o Telegram, quando especialistas em redes sociais diziam que era impossível. (...) Mas principalmente, seu papel na história recente do Brasil, desmascarando a lava-jato. (...) Gastei muita energia vendo o país se afundar, claramente desde 2013. Acompanhei incrédulo o impeachment de Dilma e a prisão de Lula. Se a história virou, se a verdade apareceu para quem se recusava a vê-la, foi sem dúvida graças a você. Sempre achei que a sociedade, a imprensa em geral, e mesmo os atores da esquerda, beneficiados pela tua ação, nunca te agradeceram, nem reconheceram publicamente de modo satisfatório a sua importância nesse processo.

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Entendo tua mágoa com esse mesmo fato. Você pagou caro. Ficou sujeito a privações injustas. A última notícia que tive foi a partir de uma entrevista do teu advogado, quando te aproximastes daquela horrorosa da Zambelli. Ouvindo a entrevista dele, compreendi tuas razões. Você estava procurando trabalho, procurando valorizar tuas competências (...) Agora, passado o tempo, espero que tenhas entendido que era uma armadilha, e que queriam apenas usar tua imagem para atacar as urnas eletrônicas. 

Gostaria de poder te ajudar, mas não sei bem como. (...) Assim como eu, muita gente tem consciência do teu papel, e da devida falta de reconhecimento público. Tenho certeza de que Lula, Gleisi, Glenn, Manuela, os advogados, a cúpula do PT em geral, todos sabem disso, mas creio que para eles é muito perigoso externar tal reconhecimento e mesmo te ajudar. Se eles viessem a fazê-lo, os lavajatistas e bolsonaristas iriam dizer que o hackeamento teria sido um crime encomendado. (...) Lula deve estar orientado pelos advogados a não se comunicar contigo.

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Sei que estás estudando direito. Com teu conhecimento em TI, tu poderias ter sucesso tornando-se especialista de direito digital. Se quiseres um dia seguir os seus estudos no mestrado e doutorado farei o possível para te ajudar (...). Sei que todas essas palavras são pouco. Mas por favor, não perca a esperança. (...) Nós só temos a te agradecer. Espero que alguém possa imprimir essa mensagem para você.”

Para minha surpresa, alguns dias depois tive resposta por e-mail, aparentemente vinda do próprio Walter. Nela, falou-me da pressão, na época em que foi preso, para forjar uma delação premiada:

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“Buscando por justiça em uma perseguição judicial que fizeram comigo em minha cidade, me deparei com as conversas da lava jato. Sempre fui contra injustiças, seja com quem for. Divulguei e acabei pagando caro por isso. Fiquei preso 1 ano e 3 meses e cumprindo medidas cautelares. Tudo porque me recusei a fazer uma delação premiada e incriminar inocentes.”

Em seguida, me falou sobre a mágoa, em particular com relação a Lula, por nunca ter agradecido:

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“Estou sendo muito sincero, não gostaria de falar isso, mas o Lula é uma pessoa muito ingrata. Ele nunca me falou um obrigado. Uma certa vez, eu estava com o Fernando Morais e o Lula ligou para ele. Ele botou no viva voz e disse que eu estava lá, o Lula desligou na hora. 

O Edinho que era ministro do Lula e prefeito da minha cidade, sempre me prometia emprego. Eu nunca pedi nada financeiro a eles, sempre pedia emprego porque estava difícil encontrar trabalho devido às restrições impostas a mim no processo, que não deixavam nem eu sair de casa após as 22:00, tinha tornozeleira, não podia usar a internet, entre outros. Infelizmente, nunca me ajudaram. E o obrigado que eu sempre esperei ouvir, nunca aconteceu.

Tive um encontro com o José Genoíno, e ele também me disse que o Lula tinha sido ingrato com ele, que ficou 5 anos preso por não falar seu nome (...).”

Depois me explicou sobre o encontro com Carla Zambelli e do reconhecimento (sincero, ainda que ingênuo) que teria por ela e por Bolsonaro. 

“Em agosto de 2022, eu estava saindo de um hotel porque tinha sido despejado do meu apartamento e encontrei a Carla Zambelli, ali ela pegou meu número de telefone e passamos a conversar. Foi quando ela ofereceu um trabalho e pediu para que eu analisasse as urnas eletrônicas. (...) De certo, eu deveria ter negado isso. Contudo, eu tinha acabado de ser despejado (...) Imagine, coloque-se em meu lugar (...) Eu não tinha ajuda alguma! 

Só que o advogado revelou o encontro para a mídia, e minha vida piorou. Quem ainda me apoiava passou a me odiar. Recebi inúmeros e-mails pedindo a devolução de pix que haviam me enviado. 

Sabendo disso, a Carla Zambelli (quem eu menos esperava) me conseguiu um emprego como programador, e ainda cuido das redes sociais e do site dela. Em suma, hoje eu tenho uma renda que me ajuda com tudo que eu não tinha. (...) Posso ter uma vida normal. Vale ressaltar que antes de eu ser preso pela invasão, eu tinha uma vida confortável, mas os advogados se valeram disso e venderam tudo. Ou seja, perdi tudo o que eu tinha para soltar o Lula, que não me deu nem mesmo um obrigado e ainda se recusou a falar comigo. 

Mas é isso, não me julgue como um traidor do PT ou bolsominion. É que ideologia não enche barriga e não paga pensão. Não dá moradia. A Carla e o Bolsonaro podem ter defeitos, contudo a parte humana deles quanto ao meu caso foi incrível (...).

Vivemos tempos estranhos no Brasil, onde quem tirou o Lula de uma prisão foi ajudado pelo Bolsonaro e pela Carla Zambelli. Sinceramente, nunca esperava isso. Mas hoje o carinho que eu tenho pela Carla é como se fosse de uma mãe, e ao Bolsonaro de um pai. O que eles fizeram por mim, quem deveria fazer não fez. E não pediram nada em troca. O Bolsonaro até me disse obrigado pela vaza jato e por ter desvendado quem era o Moro, ou seja, até o obrigado que eu esperava do Lula eu ouvi do Bolsonaro. Isso mexeu muito comigo e hoje eu não conseguiria nem falar com o Lula. Eu já criei um bloqueio que quando o Lula aparece na TV eu mudo de canal, me dá pânico. Lembrando que se eu fizesse delação, se eu não tivesse entregado o material, etc. Ele estaria preso até hoje. E nem para falar um obrigado? Ele defende o Assange e pede a libertação dele e nunca pediu a minha? É tudo constrangedor, mas fui sincero com você. Espero que me entenda.”

Depois me falou da suposta revogação, às escondidas, de suas medidas cautelares por um juiz próximo ao bolsonarismo, o que teria permitido que trabalhasse e que pudesse acessar a internet novamente: 

“Deve ter sido um juiz bolsonarista. Quando ele viu que eu me encontrei com o Bolsonaro ele derrubou as cautelares, pude usar a internet e ter minha vida normal. O processo até prescreveu no último dia 20.”

Também respondeu-me sobre o projeto de ser candidato, e de escrever um livro:

“Quanto à política, eu não me candidataria por nada, é uma sujeira sem fim. (...) Eu tenho meus valores e eles são incompatíveis com a política. Tanto que mesmo acontecendo tudo isso eu nunca sai falando mal de ninguém na mídia nem nada. 

Estou escrevendo um livro. Tem um filme também que irão lançar. Muito obrigado pela mensagem. Estou cursando ciência da computação e terminando direito. Quem sabe eu possa fazer mestrado ou doutorado, seria uma boa. (...) Obrigado mais uma vez.”

Fiquei pensando muito nas coisas que Walter me havia escrito. Dormi agitado por duas noites. Eu entendia a sua revolta. Também achava que ele havia sido relegado ao papel do "herói esquecido". Concordei que um gesto concreto, de estender a mão e oferecer um trabalho, valia mais do que mil mensagens de parabéns vazias, e também mais do que um punhado de pix de 10 reais, que soavam como esmolas, mesmo dados com toda a sinceridade, e mesmo que a soma não tenha sido tão pequena assim.

Sobretudo, initimamente eu achava uma vergonha para a esquerda (na qual eu me incluo), de constatar que o hacker, nosso heroi, passou a odiar o Lula. Isso dizia tanto sobre nós, quanto sobre ele. Trata-se de um dos personagens mais determinantes para a virada política pela qual o Brasil passou, autor da única ação de fato imprescindível na trama. Não fosse ele, o nosso presidente ainda seria o “coroné Bozo”, ou pior, talvez fosse o “coroné Moro”!

Fiquei imaginando o tamanho da mágoa de Walter, primeiro sendo masserada na cadeia, depois pelas privações com medidas cautelares arbitrárias, que lhe empurravam para o desemprego e para o desespero, e azedando mais e mais à medida que ele esperava o reconhecimento da parte de Lula, que nunca veio. De certa forma, ainda que feito de maneira não bem consciente, Walter havia sacrificado anos da própria liberdade pela do Lula. Me assustou sentir sua raiva através das palavras. Aquele Walter que, um ano antes, declarou voto em Lula, já não existia mais. E carburando essa mágoa, acabou atraido pela força gravitacional do bolsonarismo.

Me sensibilizou o fato dele associar Bolsonaro e Zambelli a um pai e uma mãe. Isso é muito forte, mais ainda dito por alguém que foi privado dos pais muito cedo. Aberrante por se tratar de dois dos personagens mais nefastos da política brasileira. Eu entendia o que se passava com ele, ainda que lamentasse.

Escrevi tudo isso a ele, numa nova mensagem, para a qual não obtive mais resposta. Nela, procurei lembrá-lo das manifestações de reconhecimento que existiram: de Glenn Greenwald, que pediu uma marcha em sua homenagem, de Joaquim de Carvalho, que desmanchou a narrativa imposta pela lava-jato, de Fernando Morais, das pessoas que fizeram doações, da própria Dilma, que o comparou a Assange e a Snowden, de senadores como Renan Calheiros e Roberto Requião, de tantos outros: professores, juristas, políticos, jornalistas, cartunistas, ativistas, jogadores de futebol, gente escrevendo textos públicos de admiração. 

Para nós, de esquerda, é muito difícil entender a aproximação de Walter com o bolsonarismo, que representa o oposto em termos de valores e ideais. É preciso, no entanto, fazer esse exercício de empatia. Walter, em um certo aspecto, é mais uma vítima do discurso de ódio da extrema-direita. Carla Zambelli nada mais fez do que se aproveitar de sua fragilidade, e de transformar sua raiva em combustível para sua propria causa, fascista e golpista. Encaixando todas as peças, entende-se que o projeto era esse desde o começo. A ameaça de hackear Alexandre de Moraes foi sinalizada por ela desde o primeiro tweet. De fato, poderia ter saido disso a motivação que faltava (ainda que falsa) à turba acampada e a certos generais, para virar a mesa. Estivemos mais perto do golpe do que pensávamos. Ele estava sendo tramado na nossa cara, ainda mais claramente do que imaginávamos. Walter, que ajudou a restabelecer a ordem democrática no Brasil, quase foi protagonista da sua destruição.

Envolto, essa semana, pelo novo furacão na sua vida, imagino que Walter não tenha mais podido me responder. Na internet, a coisa vai muito rápido. Os julgamentos são precipitados e cabais. Assim como os lavajatistas fizeram no começo, agora a esquerda é quem o está classificando de criminoso e mercenário. Outros estão com pena: se enrolou na própria ansiedade. Quando saíram as reportagens sobre seu envolvimento na trama, escrevi-lhe um terceiro e-mail:

“Caro Walter, é uma pena, mas acho que minha mensagem para você chegou tarde demais. Então, a história não era bem aquela de ‘não pediram nada em troca’... que pai e mãe são esses que te botam numa baita enrascada dessas? Francamente, você foi usado desde o início, e agora vão te jogar ao mar. Você sabotou a si mesmo. Espero, por você, que possa sair dessa sem ter que enfrentar outro processo. Mas reafirmo o que te escrevi antes: o fracasso também é nosso, coletivo enquanto esquerda, que te perdemos quando deveríamos ter te cuidado, que deixamos o teu desalento virar desespero, mágoa, e finalmente raiva.”

 

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