Dora Incontri avatar

Dora Incontri

Jornalista pela Cásper Líbero. Mestre e doutora em História e Filosofia da Educação pela USP. Pós-doutora em Filosofia da Educação pela USP. Coordenadora-geral da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita e do Pampédia Educação. Diretora da Editora Comenius. Coordena a Universidade Livre Pampédia. Mais de trinta livros publicados

4 artigos

HOME > blog

Crítica do cancelamento – a voz de quem se pretendeu calar

Alysson Mascaro examina o cancelamento e seus efeitos sociais em novo lançamento

Crítica do cancelamento – a voz de quem se pretendeu calar (Foto: Divulgação )

 Alysson Mascaro volta à escrita, em Crítica do Cancelamento, com ímpeto fecundo e já demarcando uma contribuição histórica para um tema ainda muito pouco tratado. A obra em si é um manifesto contra toda forma de punitivismo – uma das nossas lutas em comum – o que por si só já é um marco teórico urgente numa sociedade do encarceramento em massa, da arena das redes sociais e do cancelamento cada vez mais frequente e descarado, nos ventos de um neocalvinismo, que se espalhou pelo mundo, sob os auspícios do império do norte.

Toda a tecitura teórica do livro – brilhante como tudo o que Mascaro escreve e fala – ganha força existencial, entre a tragédia e a coragem, entre a dor e a resistência, porque nascida de uma experiência visceral, que não lhe arrancou, entretanto, a capacidade de análise precisa das estruturas econômicas, sociais e políticas que ensejam o cancelamento. Que ensejaram, aliás, uma tentativa articulada de calar sua própria voz. Uma voz imprescindível, neste cenário em que a própria esquerda se rende ao punitivismo liberal e a compromissos que lhe tolhem a radicalidade necessária, para a mudança de fato do mundo.  

Poderia parecer que se trata de um livro menos acadêmico de Alysson, pela ausência de referências bibliográficas e citações de rodapé. Melhor que tais apetrechos não estejam no texto, porque não interferem no fluxo vital das palavras, que chegam a nos tirar o fôlego. Nelas, a profundidade do pensamento do autor não se ausenta em nenhuma linha, mas a presença dilacerada de quem se viu cancelado entrelaça-se com a beleza e a lucidez da análise.

Mascaro percorre as formas de perseguição desde a Grécia e Roma antigas, passando por um olhar da Inquisição que – para espanto dos que não se debruçaram sobre o tema – é a forma mais próxima do cancelamento contemporâneo. Denunciava-se apenas – e de forma anônima – sem necessidade de nenhuma prova, e o perseguido já estava condenado à fogueira.  Hoje, dá-se o mesmo. O cancelamento é uma condenação na praça pública da internet, sem nenhum requisito de apresentação de provas. E mesmo que depois se comprove que não havia crime, o cancelado já teve sua reputação assassinada e sua vida devastada. Explica ele que:

Tal qual a inquisição, o cancelamento é um movimento de perseguição com pretensões a uma legitimidade não apenas estratégica, mas moral. E, por isso, seus procedimentos operam uma ligação direta entre acusação e danação.”  

O cancelamento também se distingue de demais formas de perseguição por seu caráter de construção e demonstração social de repúdio e ojeriza contra seus alvos. Aqui mais uma vez se equivale à inquisição: é preciso contrastar bons e maus, virtuosos e indignos, danando e desgraçando os que passem a ser desapreciados socialmente.”  

O combate à reputação é um instrumento por excelência da concorrência capitalista exatamente por seu caráter moral. O desmerecimento carrega consigo potências de sensibilização na ordem dos valores. Marcar fortemente o certo e o errado, o bem e o mal, o legal e o ilegal estabelece binários que permitem imediato engajamento subjetivo e operações nas quais desgraçar outrem não é sentir-se má pessoa por perseguir, mas, ao contrário, boa por justiçar.”  

O ato de cancelar não torna seu operador um desprezível justiceiro nem mero membro de manada; socialmente, ele é considerado ético, compromissado com a reeducação dos comportamentos, engajado em demandas absolutas de seu tempo histórico. Quando a possibilidade de destruição de outrem se encontra com a virtuosidade de quem destrói, o cancelamento ganha então impulso e motivação, impondo-se como referência a amplas parcelas das sociedades.”

Crítica do cancelamento se embrenha assim para entender o que significa esse instrumento de ataque ideológico e político – que aliás pode ser usado tanto pela direita, quanto por certa esquerda – em plena era neoliberal. Ao fazê-lo, como se demonstra nos trechos acima, aponta que o cancelamento é, sobretudo, moral – leia-se moralista, porque se faz numa esfera de repressão pulsional, imposta de fora, e que é forma de controle e anulação dos indivíduos que pensam e incomodam. E mais, diz Alysson: “O cancelamento, produzindo uma moralidade escandalosa, redutora e binária, sufoca a possibilidade da crítica.”

Como pretensa forma de educar a sociedade, pela punição exemplar dos que não se adequam, o cancelamento na verdade não educa. Apenas gera mais dor. Entre canceladores e cancelados. Nessa toada, depois de passar pelo esmiuçamento do lawfare, o caminho jurídico do cancelamento, Alysson emociona o leitor mais sensível, ao tratar dos cuidados dos acusadores, dos linchadores e dos cancelados. Sabe distinguir com a precisão de um olhar crítico e psicanalítico, as motivações inconscientes dos que acusam, sendo de fato vítimas, mas lançam suas dores no espaço público, o que impede a priori   a verificação dos fatos e ao mesmo tempo a elaboração de suas dores – mas gera o gozo da destruição de quem supostamente os vitimou. A vitimização, aliás, se torna espetáculo.  

Alysson também aponta os que acusam no meio de interpretações nebulosas e incertas de fatos não necessariamente danosos, mas que tiveram impacto em suas vidas. O cancelamento como projeção pública impede mesmo o acolhimento psicológico de suas dores para lançá-los no gozo esvaziante da devastação da vida do cancelado.  

Alysson trata dos cuidados que possamos dedicar aos acusadores, aos linchadores e aos cancelados – o que revela seu rigor teórico, em que se socorre da crítica social marxista e da apreensão dos sujeitos pela psicanálise, mas também se mostra o autor, com a força ética de um cancelado que se põe no alcance da compreensão do outro – mesmo desse outro que o danou. Na análise dos cuidados dos acusadores, dos canceladores e dos de má-fé – mesmo com estes, há um átimo de nobre misericórdia, por sabê-los também estimulados pela “forma social estabelecida”.

E afinal, algumas afirmações conclusivas como a de que “cancelar não é tratar das dores, é ampliar ou distribuir dores, ou mesmo constituir outras novas” e de que “cancelamento não é justiça nem reparação de sofrimentos, mas moralismo inquisitorial punitivista, saciando imediatitudes de pulsões sem resolvê-las” apontam um adoecimento social e psíquico generalizado, que é gerado por uma sociabilidade neoliberal de competição, violência e repressão.  

Ainda o autor dá voz aos apoiadores dos cancelados, que podem ser atingidos direta ou indiretamente pelo cancelamento, porque já são de pronto taxados de “passar pano” para os que devem ser sumariamente justiçados por uma justiça que não passa pelos critérios mínimos de uma investigação imparcial e pela escuta do próprio acusado. Lembra de novo o período da inquisição medieval ou moderna em que o “excomungado” ou o “condenado” à penitência ou mesmo à fogueira não podia receber um pedaço de pão, nem uma gota de água dos que quisessem permanecer sob o beneplácito da comunhão com a Igreja. Acolher um condenado era imediatamente por-se como alvo da condenação. Assim no cancelamento contemporâneo.

Crítica do cancelamento é livro contundente, arrebatador pelo clamor de quem sofreu na pele a inquisição contemporânea, em que não falta o rigor da análise que apreende todas a nuances do fenômeno. Avisa Mascaro que “em se tratando dos sujeitos cancelados, dá-se uma devastação subjetiva intensa e imensa. Ao ser levado compulsoriamente à desgraça, o alvo do cancelamento não consegue elaborar suas motivações, seus erros nem mesmo seus acertos. Ele é obrigado a encarar o opróbrio, a falência de suas condições objetivas e subjetivas, o esgarçamento de seu tecido social. O cancelado é o não-escutado em absoluto. Ele não pode sequer aprender com o cancelamento: ele é apenas sujeito-alvo de inquisição. Espera-se dele que sofra, não que elabore.”  Mas Alysson, o filósofo, o ser humano, o sujeito que se quis cancelar, faz-se sim ouvir, elaborando o que lhe sucedeu e ainda anunciando a esperança de um mundo de justiça real, em que haja acolhimento e resolução de todas as dores.  


 

O livro Crítica do Cancelamento, editado pela Contracorrente e pelo Brasil 247, será lançado dia 26 de novembro, com a presença do autor, na Casa de Portugal, às 19 horas. Av. da Liberdade, 602, São Paulo.


 

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

Artigos Relacionados