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Alysson Mascaro lança Crítica do Cancelamento e denuncia tribunal da internet

Jurista relata a perseguição que sofreu, compara cancelamento à inquisição e ao lawfare e defende uma transformação estrutural da sociedade

Alysson Mascaro lança Crítica do Cancelamento e denuncia tribunal da internet (Foto: Divulgação )

247 – O jurista, filósofo e professor da USP Alysson Mascaro lançará no dia 26 de novembro, em São Paulo, o livro Crítica do Cancelamento (Contracorrente e Editora 247), obra em que transforma a própria experiência de perseguição em uma reflexão estrutural sobre o chamado “tribunal da internet” e o capitalismo contemporâneo (compre o livro neste link). Ele descreve o cancelamento como um maquinário social de flagelo e opressão, que combina gozo destrutivo, disputa de poder e lógica de mercado.

As declarações foram dadas em entrevista ao programa Papo Curvo, da TV 247, apresentado por Dafne Ashton e pelo psicanalista Luciano Elia, em edição gravada e publicada no YouTube em 9 de novembro de 2025. Ao longo de mais de uma hora, Mascaro revisita o processo de ataques anônimos que sofreu, relaciona o fenômeno do cancelamento à história das perseguições e dialoga com a psicanálise para pensar o desejo, o ódio e o moralismo punitivista.

Do primeiro Papo Curvo ao livro Crítica do Cancelamento

Logo no início do programa, Dafne Ashton relembra que o primeiro episódio do Papo Curvo já havia tratado do “tribunal da internet”, inspirado justamente por uma entrevista de Leonardo Attuch com Alysson Mascaro e pela necessidade de discutir a perseguição a figuras de esquerda. Agora, o ciclo se fecha com o lançamento de um livro inteiro sobre o tema.

Mascaro chega ao programa visivelmente emocionado com o reencontro e com a possibilidade de elaborar publicamente o que viveu:

 “Para mim é uma emoção estar neste momento neste papo curvo. (…) Poder aqui refletir sobre questões que perpassaram minha experiência nestes últimos anos e que agora redundam num livro que é o Crítica do Cancelamento é algo muito tocante, muito especial e é também um momento e um espaço para fazermos disso luta, (…) reflexão, (…) crítica em busca da transformação social.”

O psicanalista Luciano Elia, coapresentador do programa, destaca que o livro é “robusto” e que não se limita a um relato pessoal, mas faz um “percurso histórico, conceitual”, situando o cancelamento como uma entre diversas formas de perseguição e opressão ao longo da história.

Perseguição anônima e calvário pessoal

Mascaro explica que o ponto de partida do livro é uma experiência concreta de perseguição iniciada “no começo de setembro de 2023”, quando passou a ser alvo de uma rede anônima de ataques, com perfis falsos e mensagens espalhadas pelo Brasil e pelo exterior:

 “Desde começo de setembro de 2023, começou uma rede de ataques a mim. Esta rede de ataques foi anônima, ela se deu de variados modos. (…) No meu caso, foram milhares de mensagens enviadas a pessoas do Brasil e do exterior, dizendo assim: ‘Ele saiu com você e contou para mim’, enfim, com pessoas que eu nunca vi na frente.”

Ele relata que, diante da gravidade da situação, gravou um vídeo denunciando a perseguição e ingressou com pedido de investigação criminal para identificar os responsáveis. Mas enfatiza que, desde então, passou a receber inúmeros relatos de outras vítimas, em diferentes contextos – de ambientes acadêmicos e políticos a espaços de trabalho, igrejas e círculos privados.

Daí nasce a decisão de transformar o sofrimento pessoal em reflexão coletiva:

 “Eu escrevi o livro buscando compreender, obviamente, que o meu caso, a minha história, a minha experiência é o substrato de tudo isso. Mas o meu objetivo aqui não foi falar do meu caso. (…) O meu objetivo aqui foi o de poder estabelecer uma crítica geral, estrutural, sistemática a esse fenômeno.”

Em um dos momentos mais fortes da conversa, Mascaro lembra o papel de Leonardo Attuch na defesa pública diante da campanha de difamação:

 “A primeira de todas é o nosso querido Leonardo Attuch, que eu chamei e chamo de Émile Zola deste nosso tempo, porque enfrentou a turba canceladora e a segunda turba, que é a que tem medo do cancelamento e, portanto, não se põe contra isso.”

Cancelamentos “pequenos” e maquinário social de flagelo

O autor distingue duas escalas do fenômeno. De um lado, o que chama de “pequenos cancelamentos”, ocorridos na “intersubjetividade básica” – família, amigos, trabalho, igreja, clube, ambientes cotidianos. São casos que ferem profundamente a vida de uma pessoa, mesmo que não ganhem repercussão pública:

 “Alguém no círculo de uma igreja, de uma vida empresarial, no sentido de ser trabalhador de uma empresa, é proscrito. (…) Em geral, na maioria dos casos, o sofrimento é o mesmo para as pessoas vítimas desse processo.”

De outro lado, há o cancelamento como maquinário de poder, que envolve figuras públicas, mídia, redes sociais e aparelhos ideológicos de massa. Nesses casos, o cancelamento não é apenas um conflito localizado, mas se converte em “produção social de um flagelo” e em “orientação de opressão”:

 “Existem os casos que eu diria que envolvem um maquinário, uma produção social de um flagelo e uma orientação de, portanto, referência de opressão. (…) Estes casos que nós conhecemos como casos típicos de cancelamento, casos exemplares, via de regra vão sendo somados uns aos outros, mas nunca se faz um balanço deste maquinário.”

Capitalismo de imagem, pós-fordismo e economia política do cancelamento

Mascaro situa o cancelamento no contexto do capitalismo contemporâneo, especialmente na fase que ele chama de “pós-fordista”, em que a finança e a imagem ganham centralidade na lógica de acumulação:

 “Em momentos de capitalismo demandante de imagem, demandante de uma espécie de palco social que é habilitado pela internet, redes sociais, comunicação que vai no nível mundial em um segundo. Neste mundo no qual não é a produção física da indústria o que determina a ponta de lança da acumulação capitalista, mas sim a finança.”

Se na sociedade industrial a pessoa se orgulhava da força física, da capacidade de “levantar uma tora de madeira e pôr na fábrica”, hoje, diz ele, o orgulho está na imagem projetada nas redes. O corpo não é mais apenas instrumento de trabalho, mas “investimento para uma imagem social”.

Nesse contexto, o cancelamento aparece como mecanismo de destruição de imagem que também produz ganhos – simbólicos, políticos e materiais. Ele menciona, por exemplo, a disputa por vagas em universidades e a existência de uma “economia interna” ligada a ONGs, consultorias, auditorias de comportamento e cursos de compliance:

 “Existem ONGs e instituições de uma espécie de auditoria de comportamentos. (…) Quanto mais casos houver, e quanto mais casos diferentes também houver, mais fronteira de acumulação capitalista há para essas ONGs, para essas instituições que vendem, que criam dificuldade para vender facilidade.”

Inquisição, lawfare e o atalho entre acusação e condenação

Ao discutir o lugar histórico do cancelamento, Mascaro afirma que a humanidade sempre conviveu com perseguições, mas que algumas formas são particularmente brutais por eliminarem qualquer mediação entre acusação e condenação. Ele compara o fenômeno à inquisição e ao lawfare, embora ressalte diferenças:

 “Em todas as perseguições da história, sempre elas foram muito chocantes e sempre presumiram depois uma espécie de desenrolar para que se chegasse à conclusão, menos duas perseguições que ligam diretamente à acusação e à danação: a inquisição e o cancelamento. (…) Dada a acusação, já é a danação.”

No cancelamento, como no terror inquisitorial, não há devido processo nem tempo psíquico para elaboração. O inquisidor se apresenta como portador de uma verdade incontestável – seja em nome de Deus, seja em nome de uma moral supostamente progressista:

 “Alguém dizia: ‘Você cometeu tal coisa’. A pessoa diz: ‘Não, não cometi’. ‘Eu sou o inquisidor, eu falo em nome de Deus, você duvida de Deus?’. A mesma coisa com o cancelamento.”

Ele também observa que, se o lawfare já se tornou mais visível e desgastado – com casos como o do presidente Lula –, o cancelamento ainda opera em uma zona nebulosa, muitas vezes reduzido ao “plano pessoal”, o que dificulta a crítica estrutural.

Psicanálise, desejo e ódio na turba canceladora

A presença de Luciano Elia no programa aprofunda o diálogo entre marxismo e psicanálise. Elia destaca que o livro de Mascaro não é um relato autobiográfico, mas uma elaboração simbólica que parte da experiência do autor sem se limitar a ela:

 “Você não faz disso um livro sobre você. (…) Você analisa uma série de processos e dispositivos que são completamente além da sua experiência pessoal, mas com ela na enunciação.”

O psicanalista traz a noção freudiana de inveja e de destruição do outro pela destruição, sem qualquer perspectiva de “salvar o mundo”. Para ele, muitas vezes o cancelador não busca reparação, mas pura eliminação simbólica – “cancela-se um cidadão” – em um movimento que rejeita o próprio desejo e suprime a possibilidade de elaboração.

Mascaro concorda que há um gozo destrutivo de base, mas acrescenta que esse núcleo pulsional se articula com interesses concretos de poder e de acumulação. Ao lado da inveja e do ódio, há disputas de cargos, prestígio, financiamentos, bolsas, patrocínios e lugares de fala institucional:

 “Existe uma espécie de gozo, uma espécie de dado de destruição basilar, constitutivo. Ele, só ele, dá a disputa intersubjetiva de sempre, só que ele somado a interesses, somado a dimensões de acumulação, dá um processo histórico.”

Movimentos sociais, causas justas e método equivocado

Um ponto importante da conversa é a distinção entre as causas legítimas que emergem nas lutas sociais – como a denúncia de abusos, a crítica ao patriarcado, ao racismo e à LGBTfobia – e o método do cancelamento. Mascaro faz questão de afirmar que muitas denúncias nascem de “dores, violências, opressões, abusos concretos”, que precisam ser ouvidos e enfrentados.

Ao mesmo tempo, ele alerta que transformar essas dores em combustível para linchamentos virtuais não resolve o problema e ainda alimenta um dispositivo autoritário:

 “Uma dessas razões pode ser uma espécie de legítima inferência de alguém a respeito de dores, violências, opressões, abusos que tenha sofrido. (…) Nestas situações, ainda assim cancelar não resolve sua dor.”

Luciano ressalta que o cancelamento não é uma “política de libertação”, assim como chacinas de Estado não são políticas de segurança pública. Mascaro concorda e insiste que mudanças reais exigem transformação das estruturas sociais, não respostas punitivistas episódicas.

Fidel, John Lennon e a disputa pelo simbólico

Para ilustrar como a disputa simbólica acompanha processos históricos de grande envergadura, Mascaro narra dois episódios. O primeiro é uma história que ouviu de um veterano das lutas revolucionárias latino-americanas sobre o dia em que Fidel Castro entrou em Havana, após a vitória da revolução cubana:

 “Quando viram que não tinha mais arma contra os revolucionários cubanos, saíram com a seguinte história: Fidel levou um tiro nos testículos. (…) Por que disseram isso? Porque era preciso disputar este nível imagético também, o simbólico de alguma medida.”

O boato, disseminado em rádios e jornais, buscava castrar simbolicamente o líder revolucionário – “o Castro castrado” – para tentar minar sua imagem, ainda que a derrota militar de Fulgêncio Batista já estivesse consumada.

O segundo exemplo é o do assassino de John Lennon, que, décadas depois, declarou que matou o músico porque queria ser famoso:

 “Ele viu o John Lennon na frente, matou. Ou seja, o John Lennon aqui encarnava algo para ele. (…) Se o John Lennon fosse o José Lenio, ele não mataria o José Lenio porque ele não seria famoso.”

Em ambos os casos, a figura pública funciona como alvo simbólico de um maquinário que envolve frustrações individuais e disputas de poder mais amplas – lógica que, para Mascaro, também está presente no cancelamento de intelectuais, artistas e militantes de esquerda.

Canceladores que se cancelam e o futuro do fenômeno

No capítulo final do livro, Mascaro se pergunta sobre o futuro do cancelamento. Ele avalia que, em uma sociedade organizada pela concorrência capitalista, o fenômeno tende a prosperar, tornando-se espécie de “sucessor do lawfare”. Mas também enxerga uma dinâmica de esgotamento interno:

 “O cancelamento tende, em uma espécie de lei contratendencial, a uma espécie de autoesgotamento, porque os canceladores também se cancelam. (…) É só tirar alguém do palco e pegar o que cancelou, botar no palco e tem mais gente para cancelar.”

Segundo ele, trata-se muitas vezes de um “público de esquerda liberal” que odeia o marxismo e a psicanálise e tenta transformar todas as relações em contratos burocráticos, ilusoriamente capazes de prever cada gesto, inclusive na intimidade:

 “É quase que uma piada fazer uma solução liberal dos fatos. (…) O ser humano nunca tem previsão de todas as cláusulas por uma razão básica: ele tem inconsciente e não dá para conscientizar tudo aquilo que é um ser humano.”

Revolução, amor e uma sociedade não cancelada

Apesar da dureza dos relatos e da crítica contundente ao punitivismo liberal, Mascaro afirma que Crítica do Cancelamento é, fundamentalmente, um livro de esperança. Para ele, a saída não está em “segurar o mal” por mecanismos repressivos, mas em transformar as bases da sociabilidade – uma mudança que ele não hesita em chamar de revolução:

 “É tão grave a sociabilidade feita na base de exploração, opressão, dominação e atravessamento dos seres humanos pelos outros que todo este processo só pode se resolver com uma luta muito árdua e estrutural, esta que nós chamamos, por falta de outra palavra, revolução.”

No encerramento do programa, ele define o livro como uma tentativa de “pós-cancelamento”, um gesto de devolver ao mundo uma elaboração que muitas vítimas não conseguem fazer, porque “ou o cancelado se mata, ou matam ele, ou ele se afunda numa depressão sem fim”.

 “No final das contas, é uma elaboração para ajudar o mundo, para ajudar as pessoas que estão neste processo, cancelando, linchando, sendo canceladas, para gestarmos, inclusive, uma compreensão da causa social disso. (…) Que não seja uma sociedade toda cancelada, mas uma sociedade toda reconstituída em padrões de afeto, no nível mais belo do afeto. E ainda assim, se nós pudermos falar de amor, em um padrão de amor belíssimo que dê frutos e que gere uma outra organização social muito bela também e muito esperançosa.”

O lançamento de Crítica do Cancelamento promete aprofundar, no papel, o debate que Alysson Mascaro iniciou na TV 247 e que se tornou cada vez mais urgente em tempos de linchamentos virtuais, criminalização de dissidências e mercantilização da própria imagem.

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