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Pedro Maciel

Advogado, sócio da Maciel Neto Advocacia, autor de “Reflexões sobre o estudo do Direito”, Ed. Komedi, 2007

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Democracia, liberdade de expressão e tentativa de golpe de Estado no Brasil: Análise jurídica à luz do relatório da CIDH

O relatório final reconheceu a existência de "instituições democráticas fortes e eficazes" no Brasil e que as eleições no país são livres

Atos golpistas de 8 de Janeiro de 2023 (Foto: Joedson Alves/Agencia Brasil)

Indivíduos e grupos ligados à direita e ao bolsonarismo no Brasil acionaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) com alegações de perseguição política, censura e cerceamento da liberdade de expressão, sugerindo um cenário de enfraquecimento democrático. 

Parlamentares e a oposição acionaram a CIDH contra decisões judiciais, como a condenação da deputada Carla Zambelli. A Associação de Familiares e Vítimas do 8 de janeiro também apresentou uma denúncia formal contra o Supremo Tribunal Federal (STF), alegando penas desproporcionais e perseguição política. 

A comissão visitou o Brasil a pedido desses grupos para averiguar as denúncias de supostas violações de direitos humanos e liberdade de expressão, com foco nas ações do Poder Judiciário.

O relatório final da CIDH/OEA, divulgado em dezembro de 2025, reconheceu a existência de "instituições democráticas fortes e eficazes" no Brasil e que as eleições no país são livres. 

O relatório frustrou as expectativas da extrema-direita ao não corroborar a narrativa de que o Brasil vive sob um regime autoritário ou em estado de exceção, embora tenha apontado a desinformação e os ataques ao Judiciário como fatores de corrosão democrática. Representantes da OEA afirmaram que o Brasil não é um Estado autoritário e que a institucionalidade tem funcionado.

No presente artigo procuro analisar as conclusões do Relatório Especial sobre a Situação da Liberdade de Expressão no Brasil, elaborado pela Relatoria Especial da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no que concerne ao reconhecimento do Brasil como Estado Democrático de Direito e à caracterização dos eventos ocorridos no período pós-eleitoral de 2022, culminando nos atos de 8 de janeiro de 2023, como tentativa de golpe de Estado.

O relatório da CIDH afasta leituras relativistas sobre tais eventos, reafirma a centralidade da democracia como pressuposto da liberdade de expressão e estabelece parâmetros jurídicos relevantes para a atuação do Estado na defesa da ordem constitucional.

1. Introdução

O debate jurídico brasileiro recente tem sido marcado por controvérsias acerca dos limites da liberdade de expressão, do papel das instituições e da natureza jurídica dos atos praticados contra o Estado após as eleições presidenciais de 2022. No relatório, que me arrisco a comentar temos uma análise externa, técnica e baseada nos parâmetros do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

O documento não apenas avalia a situação da liberdade de expressão no país, mas também fixa premissas jurídicas claras: o Brasil é uma democracia consolidada e sofreu uma tentativa de ruptura institucional, o que impacta diretamente a interpretação constitucional dos direitos fundamentais envolvidos.

2. O reconhecimento do Brasil como Estado Democrático de Direito

O relatório parte de uma afirmação categórica: o Brasil possui instituições democráticas fortes, eleições livres e justas, separação de poderes e funcionamento regular do Estado de Direito. Tal reconhecimento não é retórico, mas apresentado como pressuposto metodológico para toda a análise da liberdade de expressão no país.

A CIDH registra que o Brasil dispõe de arranjos constitucionais compatíveis com os padrões internacionais de proteção dos direitos humanos, destacando a autonomia judicial, o sistema de freios e contrapesos e a legitimidade do processo eleitoral. A própria realização da visita in loco da Relatoria, a convite do Estado brasileiro, é interpretada como sinal de normalidade institucional e compromisso democrático. 

Do ponto de vista jurídico, essa afirmação é relevante porque afasta qualquer tese de “regime de exceção” ou de erosão democrática prévia que pudesse justificar, em abstrato, a deslegitimação das instituições ou do processo eleitoral. O relatório afirma, de forma expressa, que não há liberdade de expressão fora de um ambiente democrático, reforçando a interdependência estrutural entre democracia e direitos fundamentais.

3. Democracia como condição para a liberdade de expressão

A Relatoria adota uma concepção substantiva de democracia, alinhada à jurisprudência interamericana, segundo a qual eleições periódicas, embora essenciais, não são suficientes. A democracia exige respeito aos direitos humanos, igualdade, não discriminação e funcionamento regular das instituições.

Nesse sentido, o relatório ressalta que a liberdade de expressão não é um direito absoluto nem pode ser utilizada para minar o próprio regime democrático. A utilização do discurso público para desacreditar, sem provas, o sistema eleitoral e incitar a ruptura institucional é caracterizada como desvio da função democrática da liberdade de expressão, e não como seu exercício legítimo.

Essa abordagem possui implicações diretas no Direito Constitucional brasileiro, especialmente na interpretação do artigo 5º da Constituição, ao reforçar que direitos fundamentais devem ser lidos de forma sistemática e em consonância com a preservação do Estado Democrático de Direito.

4. A caracterização jurídica da tentativa de golpe de Estado

Um dos pontos centrais do relatório é o reconhecimento explícito de que o Brasil enfrentou uma tentativa de golpe de Estado, associada ao processo eleitoral de 2022 e aos atos de 8 de janeiro de 2023.

A CIDH afirma que houve: (i) tentativas deliberadas de deslegitimação dos resultados eleitorais reconhecidos internacionalmente; (ii) planejamento e organização de ações voltadas à ruptura da ordem constitucional; (iii) incitação à intervenção militar e à deposição de um governo legitimamente eleito; (iv) uso sistemático da desinformação como estratégia política.

Os eventos de 8 de janeiro são qualificados como ataques às instituições democráticas, com violência dirigida contra as sedes dos Três Poderes da República, o que os afasta de qualquer enquadramento como mera manifestação política ou protesto protegido pela liberdade de expressão.

Sob o prisma jurídico, o relatório adota critérios compatíveis com o Direito Constitucional e o Direito Internacional: (a) tentativa de golpe não exige sucesso, (b) mas sim atos concretos, organizados e orientados à subversão da ordem constitucional, elementos que, segundo a CIDH, estiveram presentes no caso brasileiro.

5. Implicações jurídicas para a atuação do Estado

O reconhecimento simultâneo da democracia brasileira e da tentativa de golpe conduz a uma conclusão relevante: a atuação do Estado na defesa da ordem constitucional é legítima, desde que respeitados os parâmetros da legalidade, proporcionalidade e necessidade.

A CIDH reconhece que a gravidade dos ataques justificou a atuação de diferentes poderes do Estado, inclusive do Judiciário, mas alerta para o risco de medidas excepcionais se tornarem permanentes. O relatório, portanto, não legitima excessos, mas afasta a narrativa de que qualquer resposta estatal configuraria censura ou autoritarismo.

Do ponto de vista dogmático, reforça-se a ideia de que democracia militante , sobre o que escrevi recentemente, sendo que devemos entende-la como a possibilidade de o Estado se defender contra forças que buscam destruí-lo, sendo, portanto, compatível com o sistema interamericano, desde que submetida a controles institucionais.

6. Conclusão

O Relatório da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da CIDH oferece uma contribuição jurídica de grande relevância ao debate brasileiro. Ao afirmar que o Brasil é uma democracia e que sofreu uma tentativa de golpe de Estado, o documento afasta falsas equivalências, relativizações e narrativas que buscam enquadrar a ruptura institucional como exercício legítimo da liberdade de expressão.

A principal conclusão jurídica é clara: a liberdade de expressão não protege discursos e práticas orientadas à destruição do próprio regime democrático, e a defesa da democracia constitui condição para a plena fruição dos direitos fundamentais.

Trata-se de um marco interpretativo relevante para o Direito Constitucional, o Direito Penal e o Direito Internacional dos Direitos Humanos no Brasil contemporâneo.

Compartilho essas reflexões, pois, o Relatório da CIDH deve por fim às narrativas de que o Brasil vive sob uma ditadura, espero que a imprensa dê a ele a devida importância e divulgação.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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