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Francis Bogossian

Francis Bogossian preside o Clube de Engenharia – Brasil e o Instituto Brasileiro de Estudos Políticos; foi professor da UFRJ e da UVA; preside o Conselho de Administração das empresas Geomecânica S/A e Geocoba; ex-presidente da Academia Nacional de Engenharia; membro do Conselho Consultivo da Casa Rui Barbosa; ex presidente interino e vice-presidente do CREA RJ.

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Engenharia como questão de Estado: o gargalo silencioso do desenvolvimento

'O Brasil vive um paradoxo que ajuda a explicar parte de seus impasses. O desafio não é pequeno'

Indústria de motocicletas no Polo Industrial de Manaus (Foto: Agência Brasil )

* Por Francis Bogossian, engenheiro é presidente do Clube de Engenharia, e Luiz Antonio Elias, economista e presidente da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos /agência de inovação do governo Federal - MCTI)

O Brasil vive um paradoxo que ajuda a explicar parte de seus impasses históricos. O país dispõe de um sistema científico relevante, abriga universidades consolidadas, possui um parque industrial expressivo e retoma o tema da reindustrialização como estratégia de desenvolvimento. O conhecimento tem estado no centro das discussões nacionais e ainda assim, enfrenta dificuldades constantes para transformar grandes projetos nacionais em realidade concreta, no curto espaço de tempo. No centro desse paradoxo está um fator pouco debatido fora dos círculos especializados: a engenharia.

O seminário “A Nova Indústria Brasil e a Formação de Engenheiros: Subsídios Estratégicos” organizado pela Finep, o Clube de Engenharia, Sindicato dos Engenheiros do RJ (Senge/RJ) e Instituto de Estudos Políticos IBEP, em dezembro de 2025, demonstrou que a escassez de engenheiros e, sobretudo, a dificuldade de integrá-los de forma sistêmica aos desafios nacionais, não é um problema isolado nem conjuntural. Trata-se de um problema estrutural, que vivemos em muitas décadas, e que afastaram a engenharia das decisões estratégicas do país. Sabemos que não é possível falar em soberania tecnológica, transição energética, infraestrutura resiliente ou neoindustrialização sem colocar a engenharia no centro do projeto nacional e esta é uma preocupação que perpassa o governo, a indústria e a academia.Em países que avançaram de forma consistente, a formação de recursos humanos em áreas críticas, sempre foi tratada como uma espécie de infraestrutura do desenvolvimento. Alemanha, Coreia do Sul, Estados Unidos, China, Canadá, Finlândia e Índia seguiram caminhos distintos, mas com um ponto em comum: reconheceram que crescimento econômico, inovação e bem-estar social são construções planejadas, calculadas e executadas por profissionais qualificados. O desenvolvimento, nesses casos, não acontece por acaso, ele é “engenheirado”.

No Brasil, a trajetória foi mais errática. Entre ciclos de industrialização e períodos de reprimarização, a engenharia perdeu centralidade. Parte da formação passou a se distanciar das necessidades reais da indústria, da infraestrutura e das novas fronteiras tecnológicas. Ao mesmo tempo, o próprio tecido produtivo reduziu sua capacidade de demandar soluções complexas, o que enfraqueceu o vínculo entre formação, inovação e produção.

O desafio atual não é apenas formar mais engenheiros, mas alinhar formação com uma estratégia de desenvolvimento, que atenda aos anseios da sociedade, por mais crescimento e inclusão. Durante o seminário, um dos aspectos em debate foi o descompasso entre o que a indústria contemporânea (cada vez mais digital, sustentável e integrada) necessita e o conteúdo que muitos cursos de engenharia ainda oferecem. Esse desalinhamento não decorre de falta de capacidade técnica ou intelectual, mas da ausência, por longos períodos, de um horizonte claro de atuação deste profissional no cenário nacional.

Qualquer discussão sobre engenharia no Brasil precisa incluir a formação dos estudantes antes do ingresso na universidade. A fragilidade do ensino médio, especialmente em matemática e ciências, compromete a base sobre a qual se constrói toda a formação posterior. Mais do que índices de evasão ou desempenho, trata-se de um problema de percepção: muitos jovens deixam de enxergar a engenharia como um caminho possível, relevante e conectado a um projeto coletivo de futuro.

Nos países que conseguiram mudar esse quadro, o estímulo à engenharia começa cedo e está associado a uma narrativa clara de desenvolvimento. A formação técnica dialoga com a indústria, o ensino básico é tratado como parte da política tecnológica e a engenharia é apresentada como uma profissão capaz de gerar impacto econômico, social e ambiental para toda a sociedade.

Outro ponto central é a relação entre universidades e o setor produtivo. As universidades brasileiras avançaram de forma significativa nas últimas décadas com a expansão dos cursos e novos campos no interior do país, que produzem conhecimento de alto nível, mas que não chegam na ponta do setor industrial. Neste ciclo, a indústria inova menos do que poderia, e, consequentemente, absorve menos mão de obra qualificada. Essa distância não é apenas institucional; ela envolve cultura, incentivos, modelos de financiamento e formas de avaliação que nem sempre favorecem a cooperação.

Sem desafios reais, projetos estruturantes e interação contínua com a indústria, a formação tende a se tornar pouco conectada às transformações do mundo do trabalho. Experiências internacionais mostram que os melhores resultados surgem quando universidades, empresas e Estado atuam de forma articulada, compartilhando riscos, investimentos e objetivos.

Nesse sentido, a agenda da Nova Indústria Brasil representa uma inflexão importante. Ao recolocar a política industrial no centro da estratégia de desenvolvimento, o país volta a criar demanda concreta por engenharia, inovação e soluções tecnológicas próprias. Programas de financiamento, centros de pesquisa, parcerias público-privadas e projetos estruturantes sinalizam que há espaço para reconstruir um ambiente no qual a engenharia possa florescer e cumprir plenamente seu papel.

Os dados recentes de investimento em inovação indicam que essa capacidade existe. Sempre que surgem oportunidades consistentes, com escala e horizonte de longo prazo, a resposta é imediata: projetos de alto nível, parcerias robustas e propostas tecnicamente sofisticadas aparecem em volume muito superior ao esperado. Isso demonstra que a engenharia brasileira está viva, preparada e pronta para contribuir quando encontra condições adequadas.

O desafio, portanto, não é apenas ampliar recursos, mas garantir continuidade, coordenação e integração entre políticas industriais, educacionais e científicas. Tratar a engenharia como infraestrutura estratégica, tão essencial quanto energia, transportes ou comunicações deve ser condição para que a Nova Indústria Brasil se traduza em resultados duradouros.

“Engenheirar o país” não é uma metáfora vazia. Significa planejar com visão de longo prazo, executar com competência técnica, inovar com base científica sólida e formar profissionais capazes de transformar conhecimento em soluções concretas. Significa trocar improviso por método e descontinuidade por estratégia.

Sem isso, não haverá transição energética consistente, nem infraestrutura resiliente, nem autonomia tecnológica. O Brasil precisa decidir se continuará apenas consumindo tecnologia ou se assumirá o papel de produzi-la, adaptá-la e liderá-la em áreas estratégicas.

Em seu recente encontro com o Conselho de Ciência, Tecnologia e Inovação, o presidente Lula sintetizou esse desafio com precisão ao afirmar: “Temos a convicção de que investimento em ciência e tecnologia tem um objetivo principal: encontrar as melhores soluções para os grandes desafios nacionais… e na construção de um Brasil cada vez mais capaz de enfrentar vulnerabilidades históricas, liderar áreas estratégicas e transformar conhecimento em bem-estar para toda a população.”

O desafio não é pequeno, mas certamente a formação de recursos humanos é o caminho entre essa convicção e a realidade. É ela que transforma intenção em obra, ciência em tecnologia e projeto em país.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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